Todas as crenças, de uma certa maneira, buscaram na água os seus ritos de passagem e momentos de transição. Para alguns, a água é purificadora, para outros é ligada à morte e às vezes a vidas futuras. Da água nascemos, por ela morremos. Alimenta a Terra, mata a sede dos seres vivos, afoga, constrói e destrói e nela navegamos.

De uma forma geral, independente da cultura, a água era considerada a fonte de vida primordial. No século XVIII com o surgimento da ciência experimental, a água passa a ser incolor, insípida e inodora. A água não é mais um elemento, é apenas 3 átomos, H2O. Talvez este distanciamento emocional explique o que leva a humanidade a poluir o elemento que a mantém viva.

A Tailândia homenageia a deusa da água, Phra Mae Khongkha, durante o festival Loy Krathong, que acontece no final da temporada de monções. Milhares de pessoas iluminam os rios e canais com velas, oferecem flores e acendem incensos. É um simbolismo de amor.

Em inúmeras tradições, o peixe, fruto das águas, é um ícone de revelação, sabedoria e santidade. Quando o cristianismo surgiu, o símbolo de Cristo era um peixe. Na tradição cristã a água é um elemento purificante. Até a saliva aparece na Bíblia, curando os olhos de um cego. Curiosamente, o elemento da extrema-unção é o óleo, que não se mistura com a água.

No islamismo, os fiéis só podem fazer as suas cinco orações diárias depois de um ritual de lavagem do corpo com água limpa chamado “wudu” e os mortos recebem três banhos que os prepara para a nova vida espiritual.

A transmutação da água é uma simbologia tão forte que se repete inúmeras vezes. No Egito, Moisés faz um gesto e transforma água em sangue. Foi um choque, consideraram uma violência. Séculos depois, Jesus Cristo transforma água em vinho. E depois, antes de ser crucificado, o vinho se torna sangue sagrado.

É na água que Narciso vê sua imagem refletida. Ou seja, a água pode ser também uma prisão do Ego.

Narciso de Caravaggio

CARAVAGGIO, Michelangelo Merisi da. Narciso, 1594-1596, óleo sobre tela, 110 × 92 cm. Galleria Nazionale d’Arte Antica

No Brasil, Iemanjá é uma divindade muito venerada, até mesmo por pessoas não-praticantes do Candomblé ou Umbanda. Todo reveillon vemos levas de pessoas jogando flores ao mar para Iemanjá, independente de sua religião. Ela é também um símbolo de fecundidade e rege a maternidade. Na África era cultuada pelos egbá, nação Iorubá da região próxima ao rio Yemojá. Em rituais de Umbanda, banhos de cachoeira, rio ou mar lavam desafetos e infortúnios. Para os índios Bororo, da região do Mato Grosso, a água é o mediador entre os irreconciliáveis Céu e Terra. Não podemos pensar em água sem falar da Lavagem do Bonfim, que acontece em Salvador na segunda quinta-feira depois do Dia de Reis, em janeiro. Temos também muitos mitos ligados à água – como o Boto, o Caboclo-d’água, Alamoa, Iara, e Boiúna – que ainda perduram em algumas regiões do país.

Na mitologia grega, o Oceano é tão antigo quanto o mundo e por isso é sempre representado como um velho. Vários ícones repetem este conceito. Os nomes mais comuns da “mitologia aquática” são Netuno, Proteu, Tritão e Tetis. Netuno é geralmente representado nu, com uma longa barba e com um tridente na mão, com o qual ele poderia, a seu bel prazer, provocar terremotos e maremotos. Proteu guardava o rebanho de Netuno, isto é, os peixes. Como pagamento pelo trabalho, Netuno deu-lhe o conhecimento do passado, do presente e do futuro.

A água assume também uma face erótica-mortal com as sereias, que com seu canto atraem os inocentes homens para o fundo das águas.

A cidade asteca de Tenochtitlán (onde hoje é a cidade do México) tinha um sistema complexo e extremamente eficaz de aquedutos. Outra que impressiona é Roma, com suas fontes termais e um sistema hidráulico dos tempos de César que ainda funcionam.

Quando os espanhóis chegaram na América e encontraram os índios, a estranheza foi mútua. Os europeus questionavam se os nativos tinham alma e estes, por sua vez, mergulhavam os espanhóis na água para descobrir do que eram feitos.

Para o taoísmo e para a acupuntura, os meridianos de nosso corpo são como caminhos de água na Terra e dependem de não haver qualquer bloqueio para fluírem. Esse movimento energético (falando de modo simplista) no corpo é conhecido como “chi” e é também usado em artes marciais como o Tai Chi Chuan e o Aikidô.

O mito do dilúvio, que encontramos entre todos os povos, é a água dos céus e da terra que renova a humanidade nem que seja no tapa. É o símbolo do retorno a um passado romântico, o famoso “no meu tempo era melhor”.

A literatura, então, deita e rola com os simbolismos da água. De Lusíadas a Vinte mil léguas submarinas passando por Vidas secas, o elemento água se torna importante inclusive na narração de estórias.

Curiosamente, a iconografia moderna de água não utiliza mitos e sempre reproduz algum tipo de onda ou pingo. Ou seja, o movimento tornou-se mais importante do que o elemento. Esta mudança de entendimento da água faz todo sentido se pensarmos que somos seres pós-industriais e vivemos em uma época de valorização do conhecimento e da informação que são, por natureza, voláteis e móveis.

A internet, por exemplo, é entendida como um meio fluido, líquido. Prova disso é que usamos um navegador e somos internautas (ou, em inglês, surfistas).

Hoje falamos de fluxo de informação, design fluido, acessibilidade (não-bloqueio, chi), e redes sem limites definidos. Vivemos a água em movimento e refletimos esta fluidez em nosso cotidiano. É natural, portanto, que a imagem do mito-ícone, estática e dependente de contexto, assuma uma importância menor. Vivemos um tempo em que o conteúdo, volátil e etéreo, é mais importante do que seu suporte. Vivemos um tempo em que a onda sonora é mais importante do que a matéria (mp3 versus CDs). E por falar em música, como fã incondicional de Tom Jobim, termino fechando o verão.

 

VIGNA-MARÚ, Carolina. Águas de março. Revista Wide online, 01 mar. 2010.