Recebi para análise três livros de Arlindo Gonçalves, Desonrados e outros contos, Desacelerada mecânica cotidiana e o Carinhas(os) Urbanas(os). Este último, escrito e fotografado a quatro mãos com Luciana Fátima. Preciso confessar que tinha firme intenção de escrever três resenhas separadas, uma para cada livro. Depois de ler os livros, percebo que esta tarefa tornou-se impossível para mim.

Os contos, assim como as fotos, possuem uma estrutura narrativa interessantíssima, de reflexo. Um conto é complementar e reflexo do outro, todos os personagens se entrelaçam, todas as estórias se tocam e todos os livros tocam profundamente o leitor.

São muitos níveis diferentes de espelhamento. Começa, claro, com o Eu da estória sendo contada. Não existe um narrador, existem muitos e nenhum ao mesmo tempo. O narrador é o personagem, o autor e o leitor simultaneamente. Depois, as estórias em si, incluindo seus cenários e personagens, que parecem ser a prova viva de que a teoria das cordas é muito mais palpável do que supõe a Física. O autor brinca com os muitos níveis da cidade de São Paulo, cenário escolhido para os livros. Poderia ser qualquer centro urbano e continuaria funcionando igual. São realidades absolutamente distantes, paralelas, tangentes e próximas ao mesmo tempo. Sim, eu sei que isso não faz qualquer sentido. Leia os livros, fará. O ponto de vista do observador destes muitos mundos é também parte dele e, ao mudar o Eu narrativo, o autor insere o leitor em uma observação ativa, como parte integrante deste cenário multidimensional. E, o último e mais importante espelhamento, é a humanização destes diferentes mundos. Não há qualquer julgamento de valor, não existe uma única moral adotada. Para cada ponto de vista, ou seja, para cada Eu narrador, o autor adota a escala de valores daquele personagem e com isso tece um conjunto – que ultrapassa os limites físicos de um único livro – cromático heterogêneo, rico e por isso mesmo interessantíssimo.

E tem as fotos. As fotos repetem o mesmo diálogo. São rostos olhando para você e você para os rostos. Há uma generosidade de olhar e de se permitir ser olhado que é incomum, tanto para fotógrafos quanto para escritores. As duas profissões, por natureza, são voyeurs, gostam de observar mas preferem manter-se fora do olhar do outro. Estes autores abraçam e acolhem o olhar que volta.

É necessário um olhar maduro para perceber o Outro e enxergá-lo como similar e humano. Não existem grandes diferenças entre você, um marciano, uma prostituta portadora de HIV, um comerciante ou um autor de livros. Luciana Fátima e Arlindo Gonçalves não apenas sabem disso como aceitam o espelho. E isso é mais do que generoso, é lindo.

A grande dificuldade na fotografia não é técnica, é de discurso. É claro que existem questões de controle da luz, profundidade de campo, etc. O discurso é mais importante. De nada adianta você ter um microfone se não tem nada a dizer. Luciana Fátima tem muito a dizer. E fala junto com outro brilhante orador, Arlindo Gonçalves.

“Há poesia em fachadas de prédios históricos. Ornatos, capitéis, pedestais, cornijas, molduras, abóbadas, cúpulas, motivos vegetais, rostos de pessoas ou de criaturas – ora doces, ora sisudas.

(…) Para quem observa as construções mais detalhadamente, não passa despercebido um certo sentimento carinhoso que partia do responsável pelo projeto para com a cidade. Mesmo as feições mais rabugentas tinham por objetivo afugentar os seres indesejáveis.

Estão lá, resistindo ao descaso, ao vandalismo; verdadeiras gentilezas urbanas que os mestres das fachadas nos legaram.”

Luciana Fátima e Arlindo Gonçalves, vocês estão errados. A delicadeza, a generosidade, a poesia e a beleza pertencem a vocês.

 

 

Carinha(os) Urbanas(os) – Luciana Fátima e Arlindo Gonçalves – Editora Horizonte

Desonrados e outros contos – Arlindo Gonçalves – Editora Marco Zero

Desacelerada mecânica cotidiana – Arlindo Gonçalves  – Editora Horizonte