Tentei com afinco não falar bem de um prêmio Nobel de Literatura. Não por moda ou hype, mas porque me pareceu uma obviedade, uma unanimidade burra. Fiz um esforço no melhor estilo espírito-de-porco para colocar um probleminha aqui ou ali. Falhei miseravelmente em minha rabugice. O livro é ótimo.

Patrick Modiano, o escritor nobelíssimo, é francês, mas lendo Filomena Firmeza eu nem precisava te contar isso. O livro tem aquele clima parisiense que mesmo quem nunca esteve por lá conhece. As ilustrações do Jean-Jacques Sempé ajudam, já que o traço dele é quase que automaticamente associado à França. Modiano é filho de um comerciante judeu e uma atriz de Flandres. Há um paralelo fácil aqui com o livro, já que o pai de Filomena é comerciante e a mãe, bailarina. As histórias, biográfica e literária, se passam durante a Segunda Guerra. As comparações simplistas acabam aqui.

Em termos de delicadeza frente ao bruto, Filomena Firmeza lembra um pouco o filme brasileiro O ano em que meus pais saíram de férias, de 2006. Há uma apropriação da visão infantil — nem sempre naïf — de dores cotidianas e de horrores históricos. Filomena deixa de falar dos horrores da guerra, O ano em que…, dos horrores da ditadura. Este “deixar de falar”, como todos nós sabemos, muitas vezes expressa mais do que a verborragia. Expressa um risco, o de contar uma história por seus limites, sem impor um fato, sem obviedades. E, ao optar por este caminho aberto (e portanto íntimo), ao mesmo tempo que o autor corre um grande risco, a literatura se renova.

Filomena Firmeza é um livro de sutilezas. A história é narrada por uma personagem já adulta que, ao ver a filha no balé, lembra de sua infância. São três gerações de bailarinas. A mãe da narradora, a narradora e a filha. A guerra é mencionada apenas en passant na página 19: “Uma tarde de verão, pouco antes da guerra, quando papai era jovem, (…)” e não aparece diretamente na história. São indicações muito tênues, como o sumiço da Odile, amiga do balé; a súbita troca de nacionalidade e sotaque inventado da senhora Dismailova, professora; ou o registro no cartório onde adotam o sobrenome Firmeza. Além, claro, da mudança da família (primeiro a mãe, depois o pai e a filha) para os Estados Unidos.

No começo, eu invejava minhas colegas que não usavam óculos. Para elas, tudo era simples. Mas, depois de refletir, concluí que tinha uma vantagem: viver em dois mundos diferentes, se usasse ou não os óculos. E o mundo da dança não era a vida real, mas um mundo onde se saltava e onde se faziam entrechats em vez de simplesmente andar. Sim, um mundo de sonho, como aquele desfocado e delicado que eu via sem meus óculos.” (p. 39)

A figura paterna é adocicada e vista através dos olhos gentis da filha-narradora, mas o que eu mais gosto é o brinde: “A nós dois, senhora Vida”. Parece-me inteligente. É ao que podemos brindar, afinal de contas.

Para dançar, a narradora precisava tirar os óculos. Há toda uma brincadeira dela com o pai sobre o ver o mundo em foco ou não. Tirar e colocar os óculos como uma decisão sobre a absorção e relação com o mundo. Quem, como eu, depende dos óculos para não morrer atropelado cada vez que sai à rua, sabe muito bem que sem óculos ficamos também surdos. O não escutar sem óculos de Filomena, entretanto, é opcional, intencional e premeditado: “Mas eu tinha tirado os óculos e não o escutava mais”.

Não há característica mágica alguma. Não há sequer um acaso. Filomena e seu pai sabem o que estão fazendo, com consciência de suas escolhas. Inclusive a escolha de não absorver o mundo. Fica, então, a ideia muito clara de opção. É uma opção perceber as asperezas. É possível brincar em situações complicadas. Há uma predileção pela afabilidade mas há também um filtro, uma curadoria da realidade. E eu acho que isso é um conceito importante para qualquer um, não apenas para crianças. Podemos escolher. E a escolha nos apodera e nos fortalece. Filomena Firmeza é um livro delicado sobre pessoas fortes.

A nós duas, senhora Vida.

Publicado no Jornal Rascunho, novembro de 2014.