foto do jornalEm 4 contos, e. e. cummings se afasta de qualquer indício de tom condescendente com o leitor

Felizmente o 4 contos: E. E. Cummings não cai naquele saco de textos de autores consagrados que acham que, apenas por este motivo, sabem escrever para crianças. Talvez um fator determinante seja que cummings escreveu este livro para a filha e para o neto, portanto com um envolvimento emocional, com uma “verdade”, e não para cumprir uma necessidade/oportunidade mercadológica. Eu tinha lido no original, uns bons anos atrás e já gostava do texto. Quando meu editor o colocou na pauta, fiquei ansiosa para conhecer a tradução. Claudio Marcondes fez um trabalho primoroso, desses raros que fazem com que a tradução seja tão boa ou melhor que o original. As ilustrações do Guazzelli também somam e a decisão pelo ton sur ton foi acertadíssima e imprime a leveza necessária para não competir com o texto e nem ficar aquém dele.

No posfácio, George James Firmage nos conta que a mãe de Nancy, filha de cummings, ocultou dela que ele era seu pai. Nancy soube apenas em 1948, com então 28 anos de idade, enquanto ele pintava seu retrato e lhe contou. Após uma análise da cronologia e da biografia de ambos, Firmage concluiu que os 3 primeiros contos foram escritos para a filha e que O elefante e a borboleta, para o neto. Tenho cá meus problemas com pais que se afastam de filhos, ou que se permitem afastar. Então, não vou dourar esses 28 anos. Não acho que isso faça dos contos melhores ou piores do que são. Não acho que isso faça do cummings mais ou menos humano do que foi.

É inegável, entretanto, a qualidade literária de seu trabalho. Não falo do conjunto de sua obra, analiso o título pelo título. Falo apenas deste livro, que seria o suficiente, caso eu nunca tivesse ouvido falar em e. e. cummings, para gostar dele.

Adoro o (ab)uso das funções rítmicas, coisas de quem já era poeta. Exemplos:

Então o homenzinho muito mas muito muito muito muito muito muito velho abriu um sorriso e, encarando o elfo, perguntou: “Por quê?”.” (O velho que só perguntava “por quê?”, p. 13)

Aí o elefante e a borboleta foram descendo pelas curvas do caminho.” (O elefante e a borboleta, p. 21).

Em alguns momentos, ele é mais explícito, como na construção em versos, com direito a uma aliteração cá e lá, como em A menininha chamada eu.

Ainda por cima, e. e. cummings faz isso sem aquele tom condescendente imbecilizante que tanto odeio. O conto A casa que comeu torta de mosquito termina lindamente, com “e viveram juntos tão felizes quanto é possível ser feliz“.

Não vou dar aqui uma de Adorno (escrever poesia depois de Auschwitz é uma barbárie) mas parece-me impossível a manutenção da fórmula do final feliz em pleno 2015. Sim, eu sei que estes textos não foram escritos agora, mas eles são importantes agora. Vivemos uma falência mundial de modelos e a literatura, especialmente a infantil, precisa acompanhar esta mudança de paradigmas. O final feliz tem, em si, uma ideologia (um sistema de ideias) e que traça um único objetivo possível. Se formos analisar com calma, é uma mensagem bastante TFP (“Tradição, Família e Propriedade”, termo usado aqui em um sentido assumidamente pejorativo). Para a criança ser aceita na sociedade, precisa cumprir os pré-requisitos do que supõe-se ser um final feliz. Muitos problemas aí. Para começar, o conceito de final é estranho. Um conto de fadas que termina com um casamento reforça a noção de que o casamento é o final de algo. Some a isto o fato da protagonista ser mulher, o final vitorioso – do casamento, só para ficar no mesmo exemplo – é a derrota de seu contraponto dramático na narrativa, o homem. São camadas e mais camadas de reforços ideológicos a serviço do capitalismo, onde o bom mesmo é ter posses, ser rico, casar e ter filhos, consumir. Ok, talvez um pouco adorniana.

Saindo um pouco da narrativa e ficando apenas no ritmo, cabe aqui a lembrança de Apollinaire, Baudelaire, Whitman, Rilke Verlaine, Maiakovski e Mallarmé, colegas de cummings na adoção da narrativa intertextual, d’après Saussure. Forçando um pouco a barra, mas não muito, estes poetas escreveram em uma estrutra bem próxima ao hipertexto, que usamos hoje na internet. Então, todo esse blablablá teórico é bem mais próximo do que você imagina.

Há, então, em cummings, pelo menos para mim, uma beleza estética. Este é um título que merece estar na biblioteca dos seus pequenos. Ou na sua, se você compartilhar a minha paixão por livros infantis.

Fico aqui, então, comemorando (fugindo d)o carnaval, sem vergonha de ser feliz, o quanto é possível ser feliz.

O AUTOR

E.E. Cummings

Edward Estlin Cummings (1894-1962), mais conhecido como e. e. cummings (em caixa baixa), foi um poeta, escritor, dramaturgo e pintor norte-americano. Estes contos são seus únicos trabalhos infantis, escritos originalmente para a filha e para o neto.

TRECHO

4 contos: E. E. Cummings

Assim, em seguida, o passarinho voltou a sair e capturou um monte de mosquitos, tantos que dava muito bem para fazer uma torta, e os levou para a casa, e a casa os cozinhou com bastante açúcar e os usou como recheio da torta. Com isso, o passarinho e a casa comeram cada um três grandes pedaços da deliciosa torta de mosquito (e é preciso dizer que depois eles se sentiram muito satisfeitos).

E não só isso – eles nunca mais foram incomodados por estranhos, e viveram juntos tão felizes quanto é possível ser feliz. (A casa que comeu torta de mosquito, p. 30)

Final feliz possível. Rascunho: o jornal de literatura do Brasil. vol. 15, n. 178, p. 48. Curitiba: Editora Letras & Livros. Mensal. FEV 2015.