O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, é uma contundente crítica à guerra, aos governos, à vaidade, à ganância

 

ilustração de "Nós, os pequenos", de Carolina Vigna     ilustração de "Nós, os pequenos", de Carolina Vigna   ilustração de "Nós, os pequenos", de Carolina Vigna

A leitura que todo mundo faz (nem por isso menos verdadeira) de O pequeno príncipe é a da busca do principezinho em entender e, de certo modo, combater a mesquinharia humana, simbolizada pelos habitantes únicos de planetas minúsculos que os aprisionam. São justamente os personagens não-humanos que têm algo a dizer. Ou seja, é uma crítica à nossa própria pequenez. Pequenos somos nós, não o principezinho.

As interpretações sobre como a seriedade e maturidade das “pessoas grandes” são fruto do enrijecimento e do processo de embrutecimento da criança também já foram pensadas, escritas e divulgadas ad nauseam.

Dito isso, não acho que o leitor do Rascunho “precise” de mais uma análise das metáforas e ensinamentos de vida contidos no Pequeno príncipe. Não que eu saiba o que outra pessoa precisa ou deixa de precisar, mas vou arriscar, neste artigo, a sair bastante da nossa zona de conforto habitual e propor outra possibilidade de leitura crítica deste clássico best-seller.

Uma das formas mais simples de demonstrar visualmente o conceito de relatividade cultural para uma criança é desenhar um quadrado. Você pergunta o que é aquilo. Ela te responde “um quadrado”. Você então desenha um quadrado bem menor do lado. Pergunta de novo sobre o primeiro. Ela te responde “um quadrado grande”. Subitamente, a mesma forma, sem qualquer alteração, passou a ser grande. Com príncipes acontece a mesma coisa. Pelo menos com príncipes literários.

Se há um Pequeno príncipe, podemos assumir que talvez exista um grande Príncipe. O pequeno, de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), e o grande, de Nicolau Maquiavel (1469-1527).

Primeiro é importante entendermos a partir de onde e quando estes príncipes falam.

Saint-Exupéry escreveu o Pequeno príncipe durante a Segunda Guerra, com uma França ocupada pelos nazistas. Saint-Exupéry era piloto e conde (filho do conde Jean Saint-Exupéry e da condessa Marie Foscolombe). Um nobre, portanto. O piloto que dialoga com o seu pequeno príncipe é obviamente autobiográfico. O narrador recebe conselhos do príncipe.

Maquiavel escreveu o Príncipe em 1513, depois de ser preso sob a acusação de conspiração em 1512, quando os Médicis voltaram ao poder em Florença (a Itália ainda não era unificada na época). Seu príncipe foi escrito na tentativa de obter favores dos Médicis, da nobreza, a quem Maquiavel servia. O narrador dá conselhos ao príncipe.

Apesar dos mais de 400 anos que os separam, estes autores são muito próximos. Ambos se dedicaram a escritos sobre guerras e estratégias militares, ambos com profunda influência religiosa de seus tempos e ambos gostam de se expressar por arquétipos e metáforas. Além disso, os dois príncipes foram escritos durante exílios políticos.

Maquiavel relata, em capítulos, os diferentes principados e suas características (e consequências). Saint-Exupéry relata, em planetas, os diferentes reinados e suas características (e consequências).

O Pequeno príncipe segue a estrutura padrão dos contos de fada. Primeiro apresenta o personagem. Em seguida, há um acontecimento mítico ou mágico qualquer. Depois a apresentação do problema. Chegando, então, na peregrinação que, certamente, conduzirá a uma solução. Aplicando a fórmula: sua infância e o episódio do desenho do elefante dentro da jiboia; a aparição (mágica) do principezinho no meio do deserto; o problema dos baobás; a narração da viagem pelos planetas; o conserto do avião e suicídio do menino.

O episódio do elefante dentro da jiboia todo mundo conhece. O narrador teria feito, em sua infância, um desenho de um elefante sendo digerido por uma jiboia mas, como estava dentro da jiboia, os adultos só viam um chapéu.

Logo na primeira aparição do principezinho no meio do Saara, ele já começa pedindo que o narrador lhe desenhe um carneiro. A história se repete como um espelho: o menino só fica satisfeito quando o carneiro está dentro de uma caixa, quando está “invisível”.

O Pequeno príncipe arranca as ervas más, os baobás, assim que as identifica, quando pequenas. Diz ainda que ter o hábito de arrancar os baobás trata-se de uma questão de disciplina. Essa ideia de arrancar o mal pela raiz não é nova. E é para comer os baobás ainda pequenos que o principezinho precisava de um carneiro. Um carneiro, percebam. Um animal que representa Cristo. Ou seja, o salvador do planeta dele. Saint-Exupéry, assim como Maquiavel, usa arquétipos católicos. Há também um paralelo entre a cobra (símbolo do mal no catolicismo) que cobre o elefante, impedindo a visão, e a caixa que cobre o carneiro. Tanto a cobra quanto a caixa obrigam o espectador a acreditar que o elefante/carneiro/Cristo está lá, mesmo sem ver. “O essencial é invisível para os olhos”, etc.

O Pequeno príncipe diz, ainda, que se coloca ao alcance dos adultos que não veem os elefantes falando de golfe, política ou gravatas. Ele, condescendente, altera o seu discurso para os não-iluminados, para aqueles que não enxergam o elefante/carneiro/Cristo. Tanto Saint-Exupéry quanto Maquiavel têm discursos profundamente religiosos.

Algo familiar
Ainda que Nathan Tarcov, em Machiavelli’s critique of religion, nos lembre que Maquiavel aconselha o Príncipe a atuar contra a religião quando necessário, o mesmo autor, em Belief and opinion in Machiavelli’s Prince, aponta a enorme lista de qualidades religiosas que Maquiavel afirma necessárias. José Aparecido de Oliveira, no artigo Virtú e Fortuna, nos lembra que Maquiavel utiliza o conceito de Fortuna como uma concepção mítico-filosófico-religiosa. O capítulo 11, por exemplo, afirma literalmente que somente os principados eclesiásticos são seguros e felizes. O capítulo 22, Dos ministros dos príncipes, inteiro dedica-se à escolha do que hoje chamaríamos de equipe técnica do governo. Um pouco depois, no capítulo 26, completa “um príncipe deve gastar pouco para não ser obrigado a roubar seus súditos”. Esta história também não é nova. Está na Bíblia: Roboão, filho de Salomão, ao escutar seus amigos e ir contra o conselho dos idosos, decide aumentar os impostos para manter os luxos do governo e acaba por dividir o império do pai. Está parecendo familiar?

Vamos aos habitantes dos planetas de Saint-Exupéry. São eles: o rei solitário; o vaidoso; o bêbado; o homem de negócios; o acendedor de lampiões; o geógrafo. E, por último, o planeta Terra. Por favor, percebam o fato de que nenhum destes habitantes, exceto a frágil rosa, aquela que deve ser protegida, é mulher. A flor é a única personagem feminina no livro e é vulnerável. Não há a menor possibilidade de uma construção feminina. Talvez seja um bom momento de lembrar que tanto raposa quanto cobra em francês são palavras masculinas (le renard e le serpent). A personagem da raposa sábia é, na verdade, masculina.

Voltando. O rei solitário. Saint-Exupéry fala do isolamento do poder. Especialmente no contexto da Segunda Guerra, a realidade dos governantes era muito distante da realidade dos combatentes, dentre os quais o autor-piloto estava. O primeiro planeta é uma crítica contundente não apenas à hierarquia militar mas também ao governo francês. Sempre bom ressaltar que Saint-Exupéry escreveu o Pequeno príncipe do exílio, nos Estados Unidos. Maquiavel trata deste assunto no Príncipe inteiro, de forma recorrente. Praticamente todos os conselhos dele aos Médicis são no sentido de não perderem ou se desconectarem de seus súditos.

O planeta do vaidoso tem uma crítica bastante óbvia, tanto da vaidade em si quanto a de colocar o vaidoso como um palhaço, um brinquedo. Há, entretanto, uma segunda leitura possível, a da solidão do líder. De que adianta ser admirado se não há mais ninguém? Maquiavel aborda diversas vezes o tema sobre o que um príncipe deve fazer para ser admirado, para ser estimado. Trata-se, em ambos os casos, de uma construção de uma narrativa em torno de si e esta narrativa, como bem aponta Saint-Exupéry, depende do outro e é construída em sua relação com o outro. Giselle Falbo, em Considerações sobre o mal-estar na civilização, explica: “O eu não está na origem, ele é resultado de um processo de construção que se opera na relação com o outro — o próximo”. Se não há o outro, a identidade — e, portanto, a sua relação hierárquica com seu mundo — não existe. Saint-Exupéry trata deste assunto exaustivamente.

O bêbado é um arquétipo forte. Salomão orientou o rei Lemuel a deixar o povo bêbado para que se esquecesse de sua pobreza. A bebida entra aqui como manipulação das massas e instrumento de opressão e, ainda por cima, por recomendação bíblica. O bêbado de Saint-Exupéry também bebe para esquecer. É quase uma metalinguagem alcoólatra, ele bebe para esquecer da bebedeira. É um bêbado triste, melancólico (em oposição a um festivo, carnavalesco). Maquiavel orienta seu príncipe a, “nas épocas convenientes do ano, distrair o povo com festas e espetáculos” (cap. 21). Pão e circo. E vinho. Uma receita que não falha desde que o mundo descobriu a fermentação. Farei um brinde a isso.

O homem de negócios a princípio pode parecer uma crítica aos tempos modernos, mas é importante lembrar que o que ele conta são estrelas. Há certo romantismo. Há também certa amargura em relação à burocracia, pela qual o Estado francês é famoso desde sempre. O Pequeno príncipe ainda conclui neste diálogo que é útil para seus vulcões e sua flor que ele as possua, ao contrário do homem de negócios e suas estrelas. Percebam que o questionamento (sobre a utilidade) não está na ação (contar estrelas) mas sim em sua posse. O discurso, portanto, é o de se justificar e o de impor uma escala de valores em que um pode (é útil) e outro não pode (é inútil) possuir algo ou alguém. Essa filosofia de vida, de que a devoção de uma vida a um país ou a qualquer outro ideal utilitário redime, acompanha toda a obra de Saint-Exupéry. Além do viés mercantilista (e maquiavélico) — o da utilidade nas relações —, há ainda a questão de se possuir a personagem feminina, a flor. Considerando que a flor tem voz e é uma personagem ativa, capaz de dar e receber afeto e, portanto, bem mais que uma planta (algo passível de posse), o nosso amado e idolatrado principezinho é misógino, sinto muito.

Esta relação com a flor, aliás, é muito mal resolvida:

— Teu planeta é belo, disse a serpente. Que vens fazer aqui?
— Tive dificuldades com uma flor, disse o príncipe.
— Ah! exclamou a serpente.
E se calaram.

Conceito de beleza
Chegamos, então, ao acendedor de lampiões, que trabalha incessantemente, acendendo e apagando o lampião. Aqui, Saint-Exupéry volta ao conceito de beleza como sinônimo de utilidade: “É uma ocupação bonita. E é útil, porque é bonita”. O principezinho diz que o acendedor de lampiões “é o único que não me parece ridículo. Talvez porque é o único que se ocupa de outra coisa que não seja ele próprio”. Paradoxalmente, seu planeta é pequeno demais para dois. Freud explica.

O geógrafo rapidamente se distingue do explorador. Saint-Exupéry é o explorador. Maquiavel é aquele que escreve livros. Estou convencida de que Saint-Exupéry, estudioso de estratégias de guerra como era, piloto e militar, leu Maquiavel. E mais do que isso, de que há no Pequeno príncipe certo “troco”, uma pequena vingança (o que me faz gostar muito de Saint-Exupéry). Maquiavel era conhecido por sua antipatia à França. Saint-Exupéry muda o foco e o narrador de lugar, quase como um espelho a Maquiavel. Existem similaridades, é claro, mas existem principalmente diálogos.

Chegamos, então, ao nosso planeta. “A Terra não é um planeta qualquer! Contam-se lá cento e onze reis (não esquecendo, é claro, os reis negros), sete mil geógrafos, […].”Aqui, preciso defender Saint-Exupéry. “Reis negros” não é um indício de racismo per se, mas sim como eram chamados os reis guerreiros (não-burocratas, diferentes dos europeus), na verdade pouco importando a cor de sua pele. Não que isso o absolva de etnocentrismo, mas são questões diferentes. Um etnocentrismo imperialista, aliás, que seria natural de supor como o padrão para um piloto francês da Aéropostale.

Felizmente, na Terra há raposas. A maioria das citações que você vê por aí no Facebook coladas sobre imagens lindas e inspiradoras é de falas da raposa, como as famosas “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” e “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos”.

Há um aspecto um tanto rousseauniano no principezinho, o de supor uma inocência possível na infância, uma pureza que na verdade não existe. O bom selvagem neste caso é um bom extraterrestre infante, mas vale. O raciocínio é o mesmo. Diz Saint-Exupéry que apenas as crianças falam a língua das verdades. Ou seja, são elas que atribuem os significados verdadeiros aos signos verbais. Essa ideia de que existe uma verdade é, no mínimo, questionável. E é também religiosa.

Ao final, o principezinho toma uma decisão drástica, o suicídio. Como estamos falando de um texto muito embasado em religião, o suicídio é descrito como uma volta sem corpo/matéria ao planeta de origem, como uma libertação da alma que carrega consigo o (desenho do) carneiro/Cristo. Aqui, novamente, o símbolo — o desenho — ganha uma importância hierárquica e assume para si a noção religiosa de símbolo, mítico, o símbolo agente, que possui poderes. Neste caso, que ganha vida, sai da caixa e come baobás, mas pouco importa qual o poder. O fato é que é um símbolo dotado de poder. O suicídio pode ser entendido também como um sacrifício extremo (religioso, novamente). Seria a forma de o principezinho voltar ao seu planeta e salvar o seu povo (a flor).

Existe uma interpretação possível, que eu não vi em lugar nenhum mas parece-me plausível, que é a de que o principezinho seria o lado infantil do narrador, os dois seriam uma só pessoa. O episódio do acidente no Saara foi muito marcante na vida do Saint-Exupéry e talvez, só assim, talvez, tenha representado para ele a morte de sua “criança interior” e, por este motivo, o menino comete o suicídio.

Em Terra dos homens, quando Saint-Exupéry acha que vai morrer no deserto, antes de ser resgatado pelo beduíno, ele se remete à infância e se descreve como um menino:

Eu não era mais um corpo de homem perdido no areal. Eu me orientava. Era o menino daquela casa, cheio da lembrança de seus perfumes, cheio da frescura de seus vestíbulos, cheio das vozes que a haviam animado.

É este o menino que morre no Saara, é Saint-Exupéry. Sobrevive o aviador, profissão, que pertence ao universo do adulto. Morre o nobre, o título herdado quando menino (Saint-Exupéry era conde).

Levi-Strauss diz que a cultura surge no momento em que se cria a primeira regra, o primeiro tabu e/ou o primeiro mito, que hierarquiza e organiza a vida coletiva. Esta regra é, necessariamente, uma criação do grupo onde está inserida e, portanto, existe apenas na relação dos indivíduos deste mesmo grupo. Precisamos entender, então, que o grupo de onde partem tanto Saint-Exupéry quanto Maquiavel é eurocêntrico, católico, militar e ligado à nobreza. Há, portanto, uma exportação destes valores dominantes. Exportação e exploração de valores. Abre-se a Fundação Antoine de Saint-Exupéry. Cria-se um parque de diversões temático. Aviadores franceses refazem o percurso de Saint-Exupéry. São feitos filmes, animações, games e remakes. A sociedade do espetáculo é incansável. E o capitalismo, implacável.

Tudo bem, seguiremos lutando. O importante é invisível para o capital.

P.S.: Faço aqui um especial agradecimento ao amigo Cristiano Ferreira, que não me deixou falar (muita) besteira nos trechos sobre religião.

 

O autor

Antoine de Saint-Exupéry

Ou Antoine Jean-Baptiste Marie Roger Foscolombe, ou Conde de Saint-Exupéry (1900-1944) foi um escritor, ilustrador e piloto francês. Além do Pequeno príncipe (1943), escreveu muitos artigos sobre guerras. O acidente aéreo no Saara e o resgate por um beduíno e seu camelo foi descrito em Terre des hommes (Terra dos Homens, 1939), que recebeu o Grand Prix du roman de l’Académie française e o prêmio máximo da American Booksellers Association. Assim como no Pequeno príncipe, ele é o piloto-herói-narrador de seus quatro romances Courrier sud (Correio do Sul, 1929); Vol de nuit (Voo noturno, 1931); Pilote de guerre (Piloto de guerra, 1942). Escreveu também os livros L’Aviateur (O aviador, 1926); Lettre à un otage (Carta a um refém, 1943/1944); Citadelle (Cidadela, publicação póstuma, 1948).

Existe um aspecto biográfico fundamental para ler a obra de Saint-Exupéry: o fato de ele ser piloto e de entender o avião como algo que lhe oferecia um ponto de vista diferente do mundo. Seus colegas pilotos o chamavam de Saint-Ex. A Aéropostale, onde Saint-Ex trabalhava, exigia de todos os seus pilotos que, antes de embarcar em missões solo, fossem treinados como mecânicos. Segundo Kathryn Crim, em On Antoine de Saint-Exupéry, o livro Terre des hommes foi escrito como uma “autobiografia espiritual”. Crim narra também o episódio em que Jean Renoir escreveu para Saint-Exupéry, a respeito deste livro, dizendo “não sei se é bom ou ruim, mas tenho certeza de que é honesto” (tradução livre).

Tem uma coisa, confesso, que gosto acima de tudo em Saint-Exupéry: o fato de que ele se recusou a aprender inglês quando estava exilado nos Estados Unidos (época, aliás, em que escreveu Opequeno príncipe). Isso é tão, mas tão francês que dá até para sentir o cheiro do camembert daqui.

 

trecho

As geografias, disse o geógrafo, são os livros de mais valor. Nunca ficam fora de moda. É muito raro que um monte troque de lugar. É muito raro um oceano esvaziar-se.

Nós escrevemos coisas eternas.

fotos do jornal fotos do jornal

VIGNA, Carolina. Nós, os pequenos. Rascunho: o jornal de literatura do Brasil. vol. 15, n. 187, pp. 30-32. Curitiba: Editora Letras & Livros. Mensal. NOV 2015.