O clássico “Robin Hood”, de Alexandre Dumas, combina diversos elementos numa forma estrutural poética

O charme do ladrão

Desde o manuscrito infantil Robin Hood and the monk de 1450, atualmente na Universidade de Cambridge, Robin Hood teve várias formas. Merece menção a primeira impressão de A gest of Robyn Hode (c. 1475) e Robin Hood and Little John, do século 18. Nosso arqueiro contou com versões, adendos, músicas e filmes. Talvez as mais conhecidas sejam as de Anthony Munday (1601), Howard Pyle (1883), Frank Sidgwick (1903), Neil Philip (2000) e esta, de Alexandre Dumas, publicada postumamente, em 1872-73, em dois volumes (Le prince des voleurs e Robin Hood le proscrit).

A história, ambientada na Inglaterra de Ricardo Coração de Leão (1157-1199), todo mundo conhece. O fora-da-lei que roubava dos ricos para dar aos pobres. Floresta, arco e flecha, aquela coisa toda. Não há necessidade de repassar isso aqui de novo.

Esta versão é comentada e confesso aqui, só entre nós dois, que gostaria que fosse mais. As notas fazem uma grande diferença na leitura, especialmente para puristas como eu. Destaco, por gosto e boniteza, a nota de número 33: 

Ligeiro anacronismo na narrativa, já que as ordens mendicantes só surgiram no século seguinte, com são Domingos (1170-1221) e são Francisco de Assis (1181-1226). As ordens mendicantes se diferenciavam de outras ordens monacais pela não exigência da clausura em monastérios. Sua principal característica reside no fato de a sobrevivência física dos frades depender de esmolas e doações das pessoas, o que os levava a uma vida de errância, dedicada à pregação e à evangelização.

Percebe-se também o zelo do tradutor em manter o clima e o linguajar do original.

Um farfalhar mais demorado da folhagem e estalidos rápidos em moitas ali por perto perturbaram o devaneio do jovem arqueiro, que ergueu a cabeça e viu um gamo assustado atravessar a mata, passando pela clareira e logo desaparecendo nas profundezas da floresta.

Jorge Bastos é dos meus. A beleza está nos detalhes.

Interessa-me particularmente a estrutura de Robin Hood. A história era originalmente contada em baladas (algo mais ou menos como um poema narrativo). Para a felicidade dos linguistas e entusiastas, as versões romanceadas seguem as características das baladas à risca. Ao contrário de outros poemas narrativos, como um poema épico, por exemplo, a balada tende a focar em um evento dramático por vez, frequentemente com uma moral, assim como as fábulas. O narrador normalmente é na terceira pessoa e oculto. Os acontecimentos no decorrer da história são lentos, de forma que o herói possa aparecer em toda sua glória. De certa maneira e com alguma licença poética, é uma estrutura bastante similar à dos quadrinhos e, por sua vez, à dos roteiros blockbusters de cinema. Não por acaso, Robin Hood teve tantas versões para o cinema.

As versões medievais, musicais, também seguiam a balada. Tanto a estrutura do poema quanto a da canção é a clássica ABAB. Isso é o que chamamos, na literatura (poesia), de forma fixa. Outro exemplo é o soneto, muito utilizado em música também. Essa codificação ABAB diz respeito à rima, por estrofe. São quatro estrofes por verso, o primeiro rima com o terceiro e o segundo com o quarto. Naturalmente, os romances não seguem a métrica fixa, mas ainda assim podemos perceber em Robin Hood a mesma estrutura poética sendo repetida, em termos de tensão da narrativa, na alternância entre os momentos de dificuldade (A) e os de heroísmo (B). Como por exemplo, o abandono inicial (A), Robin salva a bela Marian (B), cobrança de impostos (A), grupo de rebeldes (B), e assim sucessivamente. A história termina bem, ou seja, termina em B.

Gênero
Não é tarefa fácil categorizar Robin Hood em um gênero literário. Não é bem um romance histórico, mas é. Tem todos os elementos necessários: recria a sociedade da época, incluindo aspectos jurídicos, linguísticos, culturais, econômicos e políticos. Por outro lado, nosso arqueiro talvez não passe de um mito, mesmo com vários historiadores se esforçando bastante para provar sua existência. Em 1852, Joseph Hunter, encontrou um certo Robert Hood, que trabalhava para Eduardo II. E, como existem, de fato, muitos registros policiais de um criminoso da época chamado “Hood, R.”, Hunter acreditou ter encontrado a verdadeira identidade do nosso arqueiro. Mais recentemente, Tony Molyneux-Smith publicou em 1998 o livro Robin Hood and the Lords of Wellow, em que afirma que Robin Hood é pseudônimo do lorde Sir Robert Foliot. Jorge Bastos ainda cita outras ocorrências na apresentação desta edição. Ou seja, não sabemos ao certo. Não que isso importe, a história é maravilhosa de toda forma.

Alexandre Dumas
Existem dois Alexandres Dumas. O pai e o filho. Falamos aqui do pai. O filho, também escritor, é o autor de A dama das Camélias. Isso costuma causar certa confusão. O pai é o autor de Os três mosqueteiros, O conde de Monte Cristo, etc. A biografia de Dumas, por si só seria suficiente para alguns tomos de romance e aventura. Alexandre Dumas era filho do primeiro general mulato do exército napoleônico e de uma escrava liberta. Era, portanto, negro/mulato em uma época — início do século 19 — em que isso era um problema ainda maior do que é hoje. Sofreu muito com racismo mas, no entanto, só falou brevemente da questão racial em Georges, romance publicado em 1843. Suas peças e livros eram populares e seriam suficientes para mantê-lo financeiramente, não fosse ele um perdulário ensandecido. Além de ter vivido endividado até a alma, mantinha casos extraconjugais com voracidade. De um desses, inclusive, nasceu o autor de A dama das Camélias. Era uma época movimentada. No prefácio desta edição, Jorge Bastos nos conta que

Casado com Ida Ferrier, numa noite fria ele preferiu ir trabalhar no quarto do casal, onde a lareira estava acesa. Ida aparentemente dormia e ele escreveu por um bom tempo, até ouvir um espirro, vindo de dentro do armário — onde descobriu o escritor e amigo Roger de Beauvoir. Viu o pobre homem se resfriando e aconselhou que se pusesse junto ao fogo. Depois, indicando a cama, onde a esposa continuava a fingir que dormia, propôs: “Façamos como os romanos antigos e reconciliemo-nos em praça pública”.

Teve também uma filha, Alexandrine, com Marie de Fernand, tradutora e autora que assinava sob o pseudônimo de Victor Perceval. Acredita-se que ela colaborou de forma bastante significativa em Robin Hood e em Os três mosqueteiros. Era uma boa parceria, já que Dumas também emprestava seu nome como coautor para garantir a publicação das obras “carreira solo” de Perceval.

O século 19 foi movimentadíssimo. Falando só dos assuntos que mais me interessam, é a época de Almeida Garrett, Charles Dickens, Degas, Delacroix, Dostoievski, Flaubert, Goethe, Goya, José de Alencar, Machado de Assis, Manet, Mark Twain, Melville, Monet, Oscar Wilde, Renoir, Tchekhov, Tolstói, Toulouse-Lautrec e Victor Hugo (amigo de Dumas, aliás). Não vale escrever para a redação reclamando que deixei seu autor/artista favorito fora da lista, viu? A lista é grande e meu espaço acabou.

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Publicado no Jornal Rascunho, outubro de 2014.