O uso de recursos ópticos em ilustração e pintura é uma área bastante controversa da história da arte e existem poucos pontos de consenso. Sabemos que grandes artistas como Jan van Eyck (1390-1441), Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610) ou Johannes Vermeer (1632-1675) tiveram contato com câmera obscura mas ninguém sabe ao certo o quanto isso influenciou na produção artística dos grandes mestres. Existe uma teoria, intitulada Hockney-Falco thesis, do artista David Hockney e do físico Charles Falco, que atribui um uso extensivo de recursos como espelhos curvos, câmeras lúcida e obscura ao realismo conseguido pelos pintores renascentistas. O livro de Hockney é muito questionado e considerado exagerado, mas o fato é que sabemos que auxílios ópticos foram de fato utilizados por vários dos grandes artistas.
Albrecht Dürer (1471-1528), em seu tratado “De Symmetria Partium in Rectis Formis Humanorum Corporum / Underweysung der Messung”, publicado em 1538, descreve com ricas ilustrações o uso do quadriculado como auxílio para o desenhista. Outra recomendação interessante é o uso de uma moldura com fios formando um quadriculado entre o artista e o modelo, para auxiliar nas proporções do desenho. Este conselho foi adaptado para um vidro quadriculado e seguido por inúmeros artistas. Até hoje, um dos métodos aplicados na aprendizagem do desenho é o do papel quadriculado para a cópia de uma referência. Existem muitas outras indicações de auxílios ópticos para o desenho, todas ricamente ilustradas. Uma destas ilustrações, a gravura Mann beim Zeichnen einer Laute é bastante famosa e acabou se tornando um ícone das experiências ópticas em arte deste período. Neste mesmo livro, Dürer também aborda tipografia (fotografias 139 a 152 no fac-símile do Rare Book Room) e mostra uma impressionante quantidade de estudos de perspectiva e simetria.
Mais recentemente e, portanto, de forma melhor documentada, sabemos de grandes artistas que usaram outros auxílios gráficos no desenho. Mestres como Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901) e o ilustrador Norman Rockwell (1894-1978) usaram fotografia como base de suas imagens, por exemplo.
Uma das minhas grandes campanhas pessoais é fazer o povo entender que a ferramenta não faz o artista. Ilustração vetorial, por exemplo, costuma dar muito mais trabalho do que a tradicional. Faço um sketch de modelo vivo em segundos, mas trabalhar um vetor pode consumir até alguns dias. Os artistas 3D sabem disso bem: usar uma ferramenta que diminui o trabalho repetitivo não significa que o computador faça tudo sozinho. O mesmo acontece com webdesign. Usar um gerenciador de conteúdo não diminui em absolutamente nada o esforço envolvido em se manter um site, por exemplo. Parece simples a todos o entendimento de que quem faz o escritor não é o Word mas no entanto muitos acham que o trabalho do artista é menor ou seu talento deve ser questionado se utiliza algum recurso tecnológico, não importa qual. Já ouvi de clientes atrocidades do gênero de “ah, isso você faz rapidinho, é só botar aí no computador que está pronto”. O isso em questão era um infográfico extremamente complexo mas não importa, poderia ser qualquer coisa que a minha perplexidade teria sido a mesma. Muito irritante esse negócio de uma pessoa ser capaz de entender que não é o martelo que faz o marceneiro mas achar que é o computador que faz o designer ou o ilustrador.
Em animação existe uma técnica chamada rotoscopia, desenvolvida pelos animadores Dave e Max Fleischer, que consiste em desenhar quadro a quadro em cima de uma referência filmada; utilizada, por exemplo, nos desenhos do Superman dos anos 40. Assim como seus primos a óleo ou grafite, essa técnica é bastante criticada por um segmento mais purista dos animadores. Na realidade o debate é o mesmo, já que animação nada mais é do que ilustração seqüencial em movimento. Ou, como disse Norman McLaren (1914-1987), “animação não é a arte de desenhos que se movem mas a arte de movimentos que são desenhados”.
Vermeer usou câmera obscura mas a pintura não se fez sozinha por mágica. Rockwell encenava as suas ilustrações primeiro na fotografia para ter a referência com detalhes depois mas a fotografia não ganhou vida e foi lá desenhar por ele, posso garantir. Disney usou rotoscopia em vários segmentos de “A Branca de Neve” e nem por isso o filme foi fácil ou muito menos simples de fazer.
Em praticamente qualquer grande loja de material de pintura hoje encontra-se para vender projetores, que nada mais são do que versões portáteis, modernas e infinitamente mais práticas das câmeras obscuras de séculos atrás. Basta mencionar a palavra “projetor” para algum artista mais purista para desencadear horas de sermão a respeito. Pessoalmente, eu prefiro o desenho de observação porque ele me dá tempo de raciocinar a imagem, mas não tenho absolutamente nada contra quem gosta de um processo mais rápido. Assim como o artista escolhe a técnica (aquarela, lápis, vetor, etc) a ser usada para cada imagem, o instrumental à sua volta também varia muito de acordo com o caso e um mesmo artista pode usar algum tipo de auxílio óptico para um trabalho e para outro, não.
Então, se alguém diminuir um trabalho seu só porque foi feito usando layers no Photoshop ou um snippet de um código qualquer, faça como eu e responda que se o Vermeer podia, você também pode.
VIGNA-MARÚ, Carolina. A ferramenta não faz o artista. Revista Web Design, Rio de Janeiro, p. 66 – 67, 01 jul. 2010