Botticelli fez três obras para a Villa Di Castello, dos Medici: Nascimento de Venus (1482), Nascimento da Primavera (1478) e Pallas e o centauro (c. 1482). Os quadros estão hoje na Galleria Uffizi.
Para comemorar a estação do ano que finalmente chega, escolhi o Nascimento da Primavera para a coluna de setembro.
Em 1492 Lorenzo, o Magnífico, morre. Lorenzo Medici era ousado e o grande patrono das artes. No mesmo ano, é descoberta a América e de repente a Europa deixa de ser o centro do mundo e o mundo, por sua vez, deixa de ser plano. Também no mesmo ano, os franceses invadem a Itália. Simultaneamente surgem os Estados nacionais (até então as cidades eram as nações). Pode até ter acontecido a mais de 500 anos, mas estamos longe de falar de um período pacato e tranqüilo.
Botticelli era apelido. Seu nome era Alessandro Filipepi e, além de ter sido o pintor oficial dos Medici, teve uma formação altamente erudita e filosófica. É considerado o criador da tradição hermética, que Dan Brown e séries de TV como Lost, Arquivo X e Armazém 13 exploram com grande sucesso ainda nos dias de hoje.
Antes de mais nada, muitos confundem o Nascimento de Venus e o Nascimento da Primavera. O de Venus é aquele com a mulher em pé em cima da concha, tenho certeza de que você conhece. O da Primavera é o que tem um monte de gente dançando com um cupido gordinho em cima.
Os personagens de Nascimento da Primavera são, da esquerda para a direita, sem incluir o cupido: Hermes, as 3 Graças (Aglaia, Thalia e Eufrosina), Venus, Primavera, Clori e o Inverno.
Hermes é associado, entre outras coisas, ao bom governo. Muitos autores acreditam que o rosto de Hermes é uma homenagem a Lorenzo, o Magnífico.
A interpretação a seguir é baseada na obra do historiador alemão Aby Warburg.
As plantas são uma alusão ao Jardim das Hespérides, que além de ser o habitat natural das ninfas, também simbolizava a passagem entre o dia e a noite e por este motivo o quadro é pintado com uma luz de lusco-fusco.
Zéfiro (inverno) se apaixona pela ninfa Clori, a persegue e a violenta (ela já está grávida no quadro). Primavera é filha de Zéfiro com Clori. Sim, é Primavera no ventre de Clori e ela já nasce adulta e vestida. Coisas da mitologia grega. Clorofila, por sinal, quer dizer amizade com Clori.
As Graças (Cárites) são as deusas da dança, dos modos e da graça do amor. São as bailarinas do equilíbrio cósmico e presidem todas as festas. A expressão “sem graça” faz referência a elas.
Um fato interessante é que estes quadros não foram pintados para o público genérico. Foram encomendados para a Villa dos Medici. A Villa era um lugar de exercício do ócio, ou seja, um tempo voltado para si mesmo, de auto-conhecimento. Negócio significa a negação do ócio.
Tanto para os gregos quanto para os romanos, ser culto era uma forma de vencer a morte e por isso o entendimento dos ícones, símbolos e alegorias escondidos nas obras era tão importante.
Tudo começa com a concepção da Primavera, a cena com Zéfiro e Clori. A presença das Graças nos diz ser um momento de festa e Hermes dá a notícia: a Primavera chegou! Por isso essas figuras todas estão ali. O quadro explica o quadro. Nós vivemos um tempo em que a mistura do texto com a imagem, ou seja, tanto da imagem ilustrativa quanto do texto explicativo, é um fato comum e ordinário. Esta prática de auxílios para interpretação e mensagem só se tornou comum depois de Gutenberg.
Estas obras permanecem famosas e fazem sucesso até hoje justamente por não depender de anexos para sobreviver. Talvez deveríamos questionar-nos sobre até que ponto não contamos demais com textos e contextos para que as nossas imagens façam sentido. Será que com um pouco mais de esforço não conseguiríamos construir ilustrações (ou layouts, ícones, logotipos, o que for) mais independentes e portanto mais duradouros?
VIGNA-MARÚ, Carolina. É Primavera! Revista Web Design, Rio de Janeiro, 01 set. 2010.