É difícil escrever crítica quando o livro é muito ruim, porque não tem material nem para isso. É igualmente difícil quando o livro é bom demais, porque pode soar muito tiete. Hamlet ou Amleto é o segundo caso.
Hamlet ou Amleto propõe ao leitor que se coloque na pele de um jovem ator que precisa encenar o papel principal de Hamlet. Com esta premissa aceita, o leitor embarca em um diálogo com o texto de Shakespeare. O subtítulo, aliás, é Shakespeare para jovens curiosos e adultos preguiçosos. Não sou preguiçosa e não me enquadro, faz muito, em jovem. O livro é para qualquer um. O recomendei, inclusive para professores do mestrado e para o meu filho. Recomendo a você também. Sério. Coloca o Rascunho de lado um segundinho só e vai lá comprar. Tipo agora.
Rodrigo Lacerda é bem-humorado sem deixar de ser rigoroso e crítico. “Não faça caso do fato da universidade só ter sido fundada aproximadamente quatrocentos anos depois da data em que a história se passa. É um anacronismo desimportante, entre outros.” Shakespeare volta a ser engraçado e divertido, como sempre foi. Lacerda devolve-lhe sua aceitação popular e, de uma forma muito leve, dá aulas de história da literatura: “A sua história, querido príncipe, resulta de mais uma investida de Shakespeare num gênero teatral desavergonhadamente apelativo e popular, as ‘peças de vingança’. Em visita anterior a esse território, entre 1588 e 1593, ele escrevera sua tragédia mais sanguinolenta: Titus Andronicus.”
Lacerda mostra que conhece seu público (eu concordo com ele, viu?): “E por mais que os adultos e pedagogos de hoje reclamem do excesso de violência na TV, nos videogames e no cinema, convenhamos, nada se compara ao enredo que acabo de descrever. Nos séculos XVI e XVII o bicho pegava muito mais.”
Não deixa passar nenhum detalhe. Gosto de gente meticulosa. Ele comenta, quase en passant sobre algo que sempre me chamou a atenção, os valores narrativos psicológicos entre prosa e verso: “O verso, com ritmo e métrica, é a linguagem usada nos momentos em que o personagem está em pleno controle de si mesmo e preocupado em exprimir seus pensamentos com o máximo de clareza. A sua falsa maluquice, portanto, fica mais verossímil em prosa.” Essa ideia vem lá de Aristóteles. Os papéis entre poesia e prosa – de assumirem para si o texto racional versus o emocional (se é que isso existe) – entretanto, não se mantiveram fixos. Alguns períodos da história colocam a forma em poesia como emotiva e a em prosa como racional, lógica. Não encontrei nenhum estudo acadêmico sobre isso, mas parece-me que hoje vivemos uma liberdade em relação a esta questão, com ambas as formas podendo assumir para si qualquer ou nenhum gênero, contexto ou função. Tem ainda a prosa poética de Cruz e Sousa, Baudelaire, Rimbaud e, Mallarmé, mas vamos voltar aqui ao nosso príncipe em crise.
“Alguns dos versos acima, sobretudo os mais íntimos – ‘tentar-vos para a cama’, ‘beijos asquerosos’, ‘tocar vossa nuca’ –, dependendo de como forem interpretados por você e pela atriz que faz a rainha, dependendo da linguagem corporal entre vocês, podem muito bem sugerir a forte atração sexual edipiana entre mãe e filho que Freud viu em você (e em todo mundo).” Esta ligação entre Hamlet e Édipo começou, provavelmente, com o ensaio do Ernest Jones (1879-1958), intitulado The Œdipus-complex as an Explanation of Hamlet’s Mystery: A Study in Motive, que acabou sendo publicado e comentado por Sigmund Freud (1856-1939) no capítulo quinto do A interpretação dos sonhos, de 1899. O ensaio do Jones está disponível na íntegra, em inglês, online, no The American Journal of Psychology.
Em um certo ato falho meu, passo de Freud para o machismo.
“Ser bela e virtuosa são duas coisas incompatíveis a seus olhos, meu caro príncipe misógino.” O assunto aqui é Ofélia, mas se encaixa em muitos outros. Considerando que ainda hoje, em 2015, separamos autores em caixinhas, em categorias, “literatura feminina” e outras atrocidades, a misoginia na literatura de uma forma geral parece-me ainda perdurar.
Edipiano e misógino.
O mercado literário é repleto de histórias de grandes falhas de análise. Um dos casos mais conhecidos é o do Harry Potter sendo recusado por um monte de editoras por ser extenso demais para a faixa etária. Esses erros de julgamento são comuns e são quase todos frutos de seguir dogmas. Se fôssemos analisar os “clássicos” hoje, sob os critérios editoriais contemporâneos, acho que não passava quase ninguém. Lacerda se diverte: “A falta de realismo nos deslocamentos físicos dos personagens – você e sua planície… – e nas passagens de tempo é característica dos dramaturgos ingleses de quatrocentos anos atrás. Eles não estavam nem aí, e teriam sido reprovados em qualquer oficina de roteiro.”
A tradução usada para análise em Hamlet ou Amleto é do próprio autor. Sim, isso faz diferença: “O Coveiro 1 está fazendo aqui um joguinho verbal que nenhuma tradução pode reproduzir. No original em inglês, primeiro usa a expressão inglesa bear arms no sentido de ‘portar armas’, isto é, ter um escudo de família, um brasão, sinal de nobreza. Mas quando o Coveiro 2 questiona o fato de Adão ter sido nobre, o Coveiro 1 muda o sentido da palavra arms, usando-a na acepção mais conhecida, para designar os membros superiores do corpo humano, nossos queridos bracinhos. Como Adão foi o primeiro homem, ele forçosamente foi o primeiro a ter braços, e depois de furunfar com Eva foi ainda o primeiro castigado por Deus a usar seus braços na luta pelo pão de cada dia, tratanto a terra, e cavando, para se alimentar.” Venho de uma família de tradutores e fico imaginando as semanas passadas em claro antes da desistência, antes de assumir a impossibilidade de tradução.
Você sabia que no Brasil existem várias traduções diferentes de Hamlet? Uma delas, do Millôr Fernandes (L&PM, 1988), foi polêmica e, na época, criticadíssima pela Folha de São Paulo, justamente por teóricos “erros” de tradução. Digo teóricos e coloco erros entre aspas porque, como brilhantemente demonstrou Lacerda, isso não é tão simples assim, não é tão preto no branco. Motivo pelo qual, aliás, esses tradutores automáticos podem até ajudar na hora de dúvida sobre uma ou outra palavra, mas nunca vão funcionar plenamente. Outro dia mesmo vi contra-filé traduzido como against filet. Estou rindo até agora.
Ler Hamlet ou Amleto é tarefa rápida. Li em poucas horas. Difícil mesmo é deixar o livro. De vez em quando, andando na rua, rio sozinha de algo que lembro. Eu, que já tinha fama de maluca, pioro a passos largos.
Não vou te contar sobre a caveira do “ser ou não ser”. Vai lá no livro. Se a sua ansiedade for grande demais, o comentário a que me refiro está na página 147 e vai ser surpresa para muita gente, posso garantir.
Hamlet ou Amleto me fez pegar Shakespeare de novo e conseguiu com que um adolescente tivesse interesse em lê-lo. Pelos meus parâmetros de sucesso absoluto, missão cumprida.
Trecho (p. 117- 118):
Obrigado a engolir seu orgulho na corte dinamarquesa e na família, sentindo a cada dia o gosto amargo da impotência, você quase que involuntariamente vai se identificando com os homens em geral, seus súditos, aqueles que sofrem todos os dias. Você está deixando de ser tão egocêntrico e vaidoso da sua vidinha perfeita de príncipe:
“Ser ou não ser, eis a questão.”
Para não conhecer o primeiro verso deste novo monólogo, o espectador precisa ter um índice elevadíssimo de isolamento mental, social, cultural, profissional, geracional, nacional, animal, irracional e abdominal. O verso não é tão famoso por acaso. Ele diz muitas coisas ao mesmo tempo. A ação exigida deve acontecer, ou não? Você morrerá ao atentar contra a vida do rei? Se a vida é tão cheia de problemas, não seria mais racional terminá-la? O suicídio não seria a melhor opção? Como fazer a vida valer a pena?
O autor:
Provando que é possível acadêmico não ser pedante, Rodrigo Lacerda (1969-) é doutor em teoria literaria e literatura comparada pela USP. De seus estudos nasceu O mistério do leão rampante (1995; Ateliê Editorial), vencedor do Prêmio Jabuti de 1995. Também lançou A dinâmica das larvas (1996; Nova Fronteira), a coletânea de textos Tripé (2000; Ateliê Editorial) e Vista do Rio (2004; Cosac Naify).
publicado em
Shakespeare para todos. Rascunho: o jornal de literatura do Brasil. vol. 15, n. 182, p. 41. Curitiba: Editora Letras & Livros. Mensal. JUN 2015.