publicado na revista Webdesign de fevereiro de 2010, ano 7, nº 74, ISSN 1806-0099.

 

Cecília Meireles escreveu um livro intitulado Batuque, Samba e Macumba: Estudos de gestos e rituais 1926-1934, publicado pela Funarte em 1983, onde ela descreve a vestimenta das baianas em detalhes. As baianas, no carnaval, são uma homenagem às “tias” dos escravos, as senhoras que educavam seus filhos, cuidavam dos doentes e apaziguavam brigas. O pano na cabeça das baianas chama-se trunfa e, apesar desta informação já ter se perdido, é um signo também de matriarcado e de status. O mesmo livro relata também a relação entre o batuque e a capoeira: “O batuque vem do ritual de adestramento masculino para as guerras, seus movimentos são martelados e secos, e a coreografia consta da marcha cadenciada de um dos personagens, ladeando a roda que sustenta a música com cânticos e instrumentos, acompanhados de bater de palmas, terminando num golpe de agilidade que deita por terra o companheiro escolhido para substituir. Do batuque derivou-se no Brasil a escola de capoeiragem.[1]” Tanto a capoeira quanto o batuque foram proibidos no Brasil durante muitos anos. Alguns autores acreditam que os passos de samba têm sua origem na capoeira, que seriam golpes de capoeira levados na brincadeira, sem violência. Como sou capoeirista e no entanto sou incapaz de sambar nem que minha vida dependa disso, essa vertente me parece um tanto alienígena.

Não posso falar em Carnaval sem mencionar a Commedia dell´Arte e seus personagens Pedrolino, Arlecchino e Colombina (Pierrô, Arlequim e Colombina, respectivamente). A Commedia dell´Arte surgiu na Itália durante o Maneirismo (século XVI) e era originalmente um teatro de rua mas conseguiu tanta adesão que tornou-se um evento popular. Era um acontecimento bastante revolucionário para a época, em que as peças eram faladas em italiano e não mais em latim, o que muito ajudou a sua popularização. Até pouco tempo atrás aqui no Brasil ainda víamos crianças fantasiadas de Pierrô e de Colombina nas ruas mas acho que esta tradição se perdeu.

Foi em Carnavais, paradas e procissões, de Roberto da Matta, que encontrei a melhor referência sobre a importância da fantasia carnavalesca: “No Carnaval a roupagem apropriada é a fantasia, um termo que em português do Brasil tem duplo sentido, pois tanto se refere às ilusões e idealizações de realidade quanto aos costumes usados no Carnaval. (…) O contrário ocorre na fantasia carnavalesca, que revela muito mais do que esconde, já que uma fantasia representando o desejo escondido faz uma síntese entre o fantasiado, os papéis que representa e os que gostaria de representar. Como conseqüência, as fantasias carnavalescas criam um campo social de encontro, de mediação e de polissemia social, pois, não obstante as diferenças e incompatibilidades desses papéis representados graficamente pelas vestes, todos estão aqui para ‘brincar’. (…) O pobre que se transforma simbolicamente em nobre, é porque não quer (ou não pode) abrir mão deste momento compensatório que lhe proporciona o Carnaval.[2]

Os elementos carnavalescos tem origens diversas. Uma história que acho interessante é a do confete. A origem é espanhola (papelillos) mas foi o confete francês, criado por Le Malin Cassin, que veio para o Brasil. Devemos aos comerciantes cariocas Miguel Lemos & Irmão a introdução do confete no Rio de Janeiro, em 1892. A imprensa saudou a inovação porque era uma alternativa ao entrudo – uma “brincadeira” que consistia em alvejar quem quer que ousasse passar na rua com água e farinha colocadas dentro de bolhas de ceras ocas – mas o início do uso do confete foi também violentíssimo, com os pitboys da época enchendo bocas e roupas dos mais fracos. Foi só em 1896, com a chegada das mais variadas formas e cores de confete e serpentina, que a brincadeira entrou mais no espírito do Carnaval. Em 1897 surgiu o confete de ouro, “coisa finíssima e cara, capaz de embelezar qualquer mulher. Jogar confete dourado numa cabeça feminina era glorificar a proprietária da cabeça. Dois mil contos gastou o carioca em ‘papel picado’ no ano de 1898! O País proclamou: ‘O alter ego da moda é o jogo de confete’.[3]” Em 1907 o jornal A Gazeta de Notícias promoveu uma grande batalha de confete, em um evento puritano, onde quem tivesse “intenções lascivas” era vetado. A batalha aconteceu no Rio de Janeiro, na segunda-feira de Carnaval, na Avenida Beira-Mar, das 16 às 20 horas, e de lá os foliões seguiram para um bal masqué (baile de máscaras) beneficente no Clube de Regatas de Botafogo. Desde então escutamos que o “verdadeiro” Carnaval está morrendo. Nesta época a crítica ia para os bailes e demais eventos em clubes, hoje escutamos o mesmo discurso em relação aos sambódromos da vida. Passaram-se mais de cem anos e o discurso de quem ou o que é “verdadeiro” continua, sem levar em conta que Verdade é um conceito absolutamente subjetivo e dependente da noção de realidade que você tem. Viva Joãosinho Trinta, isso sim!

A raiz da maioria dos elementos carnavalescos está na fantasia, na transmutação temporária. Por este motivo sempre acho engraçado quando um amigo nerd/geek me diz que não gosta de Carnaval e, ao mesmo tempo, usa nicknames online ou se caracteriza com o nobre uniforme da Federação. É claro que cada um de nós lida com este jogo psicossocial da máscara de maneiras diferentes, mas não critique quem gasta dinheiro com fantasias e cai na folia todo ano. É uma “válvula de escape” tão importante para aquela pessoa quanto FarmVille ou RPG pode ser para você.

 

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Dica: o conto Restos do Carnaval, de Clarice Lispector

[1] MEIRELES, Cecília. Batuque samba e macumba: estudos de gestos e ritmos. Funarte, 1983.

[2] DA MATTA, Roberto. Carnavais, paradas e procissões: reflexões sobre o mundo dos ritos. In: Religião e Sociedade. Rio de Janeiro. ISER: Maio, 1977. N. 1, p. 3-30.

[3] ENEIDA. História do carnaval carioca. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1958.