Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.10 no.26 Lisboa jun. 2019
QUALIS 2015: A2 (artes/música)
As Ilhas, As Pedras— A História: O erotismo de Marcos Rizolli
Resumo: Análise interpretativa da série “As Ilhas, As Pedras — A História”, de Marcos Rizolli, especialmente da obra intitulada “Michelangelo”, sob o viés do erotismo, da psicanálise e das dicotomias contidas na obra.
artigo completo: As Ilhas, As Pedras— A História: O erotismo de Marcos Rizolli
As Ilhas, As Pedras – A História: O erotismo de Marcos Rizolli
The Islands, The Rocks – The History: Marcos Rizolli’s erotism
Resumo:
Análise interpretativa da série “As Ilhas, As Pedras – A História”, de Marcos Rizolli, especialmente da obra intitulada “Michelangelo”, sob o viés do erotismo, da psicanálise e das dicotomias contidas na obra.
Palavras chave: Rizolli, história da arte, erotismo.
Abstract:
Interpretive analysis of the series “The Islands, The Stones – The History”, by Marcos Rizolli, especially the work entitled “Michelangelo”, considering the point of view focused on eroticism, psychoanalysis and the dichotomies contained in the work.
Keywords: Rizolli, art history, erotism.
Introdução
A série intitulada “As Ilhas, As Pedras – A História”, de Marcos Rizolli apresenta, em 3 etapas, gravuras digitais coloridas, a saber, em sequência: ilhas, pedras e história, sendo a última etapa o objeto de estudo principal desse artigo. A relação que Rizolli faz com a História da Arte acontece através da busca de sua essência e não de sua figuração ou significação que podem ser, ambas, redutoras.
Essa essência, tanto por sua formalidade quanto pelo uso cauteloso do cromatismo, pode ser lida como erótica sob o ponto de vista psicanalítico (pulsão Eros, de Freud, principalmente).
Essa análise interpretativa considera aspectos formais e poéticos, com maior foco na obra intitulada “Michelangelo”.
Mesmo quando há uma clara referência à História da Arte, Rizolli não produz releituras. O artista busca a essência do sensível contida em seu referencial. E, por ser uma comunicação sensível, trata-se de uma apresentação e não de uma representação. Como diz o próprio artista,
Contudo, o conceito de arte compreende um outro aspecto específico: independentemente de tempo ou cultura, ela nasce, sempre, como atividade de comunicação sensível. (RIZOLLI, 2005: 5)
Figura 1. Michelangelo, série “As Ilhas, As Pedras – A História”. Fonte: cortesia do artista.
- As Ilhas
As ilhas, em uma primeira impressão, são ilhas de cor, ilhas geográficas que surgem do branco, tal qual as que brotam no mar. Brotam em camadas, apontando didaticamente para as camadas de significação que ali existem, a saber:
- A ilha no sentido de isolamento: Rizolli fala a partir da solidão. Não importa se essa solidão pertence ao artista ou não. Essa solidão pertence à obra e é dela que falamos. Ainda dentro da poética do isolamento, há um silêncio de recolhimento, como define Coli:
O campo da pintura, seja ele o da imobilidade, do recolhimento, seja ele o da agitação, é sempre recoberto de silêncio, e todos os silêncios são bons no que concerne às obras de arte. Só existe um silêncio ruim em relação a elas: o silêncio que impede as obras de emitirem suas vozes, silêncio produzido pela mordaça, silêncio da censura. É o único silêncio, no campo das artes, que deve ser combatido. (COLI, 2014: 434)
- A ilha no sentido corpóreo (um corpo de “terra”): Rizolli, ao utilizar formas orgânicas e topográficas em sua gravura digital, sintetiza o corpo (de Adão, de Deus, tanto faz). A ilha é, portanto, a visualidade da pele como interface:
A pele é um elemento essencial, porque paradoxal, do corpo paradoxal: ao mesmo tempo interior e exterior, interface entre o espaço exterior e o interior, constitui o operador da reversão do fundo do corpo na superfície. (GIL, 2002: 141)
- A ilha no sentido geográfico: declara-se, em seu contorno físico, o entendimento de que a essencialidade da História da Arte é uma leitura possível de mundo, limitada pela pré-existência do repertório do fruidor.
- A ilha no sentido biográfico: Cada ser humano é sua própria ilha e os artistas estão constantemente relendo suas próprias biografias. Os objetos de observação/pesquisa continuam os mesmos (ilhas, por exemplo, são as mesmas desde antes do homo sapiens), mas cada artista vê seu objeto com olhos diferentes. É esse olhar que constrói a imagem, não a imagem que constrói o olhar. Como diz Merleau-Ponty,
O olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele próprio e, na paleta, a cor que o quadro espera; e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas. (MERLEAU-PONTY, 2013: 23)
- A ilha no sentido arquitetônico de núcleo: “As Ilhas, As Pedras – A História” é um conjunto coeso e coerente que forma um núcleo daquilo que é essencial da história/forma/imagem que rememora.
- As Pedras
As pedras, preciosas em intenção e gesto, atribuem o valor erudito à gravura digital. Trata-se de uma pedra poética, compreendida pela coloração de um corte transversal, tal qual vemos em museus de ciência natural.
Uma das muitas possibilidades de leitura das pedras é o museológico, o que colocaria a obra dentro da esfera da pulsão de morte (Tânato), em clara oposição a Eros, já que a museolização e a petrificação, ambas, congelam a vida. Entretanto, a estabilização que seria esperada da pulsão de morte é quebrada pelo posicionamento da figura na composição. Então, por causa do dinamismo compositivo, a obra de Rizolli insere-se no limiar entre as pulsões Tânato e Eros, equilibrando-se também entre o pensamento racional e a emoção. Cabe aqui a ressalva de que não acreditamos que pensamento e emoção sejam dicotomias, mas valores complementares.
O cromatismo das pedras, que alude a pedras preciosas, faz-se presente de maneira contundente e sem concessões nem mesmo à sua referência na História da Arte. As cores usadas em “Michelangelo”, por exemplo, não são uma citação. As cores são, em si, a expressão de sua preciosidade em uma escolha nada aleatória.
- A História
Em Michelangelo (Fig. 1), Rizolli faz uma menção clara e direta ao momento narrativo mais significativo da Capela Sistina, o afresco A Criação de Adão, quando os dedos de Adão e Deus quase se tocam. Rizolli transita o tempo todo entre limiares tensionais. A tensão, aqui, é a do quase toque, do quase tato. É um “quase”, não é a sua consagração, sua resolução. Nessa tensão reside também um erotismo fetichista da interrupção, da suspensão (do toque). As ilhas de Rizolli não fazem uma simples releitura dessa tensão catalisadora da insinuação de movimento contida tanto na obra da Rizolli quanto na de Michelangelo. As Ilhas mostram o que há de essencial nessa tensão, nessa pulsão vital.
A História em Rizolli é tanto a História da Arte quanto a sua memória. Não se trata de uma narrativa por repetição, mas por evocação. Rizolli faz aflorar a rememoração da obra referência sem ser pelo viés da releitura ou da representação mas pela via do sentimento evocado.
Quanto ao par evocação/recordação, a reflexividade está em seu auge no esforço de recordação; ela é enfatizada pelo sentimento de penosidade ligado ao esforço; a evocação simples pode, nesse aspecto, ser considerada como neutra ou não marcada, na medida em que se diz que a lembrança sobrevém como presença do ausente; pode-se dizer que ela é marcada negativamente nos casos de evocação espontânea, involuntária, bem conhecida dos leitores da Busca… proustiana; e, mais ainda, nos casos de irrupção obsessiva, que iremos considerar no próximo estudo; a evocação já não é simplesmente sentida (pathos), mas sofrida. A “repetição”, no sentido freudiano, é, então, o inverso da rememoração, que pode ser comparada, enquanto trabalho de lembrança, ao esforço de recordação acima descrito. (RICOEUR, 2007: 55)
Conclusão
Existem muitas camadas de erotismo na relação com a História da Arte de Rizolli, a começar com a própria relação em si, já que nosso Self e, portanto, nosso Eros se constitui na relação com o Outro. Rizolli desloca – o deslocamento é também uma forma de sublimação – esse “outro” para o intelecto e a racionalização da História mas, ao optar por uma plasticidade onde as formas em si se “atraem” uma pelas outras (vide Figura 1), o artista devolve à racionalização a organicidade e, consequentemente, o seu Eros.
Rizolli passeia, portanto, entre diversos valores complementares (alguns, dicotomizados na cultura ocidental), a saber:
- Vida-morte
- Racionalização-erotismo
- Estabilidade-instabilidade
- Plasticidade-petrificação
A complementariedade de valores tão atávicos e fundamentais é, per se, também uma erotização.
Talvez seja essa capacidade de transitar entre o invisível/sensível e o plástico/visível o maior trunfo dos artistas.
O artista tem que manipular dois sistemas de pensamento distintos, que resultam em duas produções distintas. (CATTANI, 2002: 41)
Rizolli mantém uma saudável tensão entre as sublimações descritas por Freud (artística e intelectual-científica) e as pulsões de vida (Eros) e de morte (Tânato).
Referências
CATTANI, Icleia Borsa. Arte contemporânea: o lugar da pesquisa. In: BRITES, Bianca; TESSLER, Elida (org.). O meio como ponto zero: metodologia de pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 2002. (Coleção Visualidade; 4).
COLI, Jorge. A inteligência do silêncio. In: NOVAES, Adauto (Org.). Mutações: o silêncio e a prosa do mundo. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2014.
GIL, José. O corpo paradoxal. In: LINS, Daniel; GADELHA, Sylvio (org). Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 2002. (Outros diálogos; 8)
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Trad. Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François [et al.]. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
RIZOLLI, Marcos. Artista, cultura, linguagem. Campinas: Akademika, 2005.