VIGNA, Carolina. Constante movimento. In: Jornal Rascunho, v. 22, n. 271, Novembro 2022, p. 26. (impresso e digital) Disponível em: <https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/constante-movimento/>. VIGNA, Carolina. Constante movimento. In: Jornal Rascunho, v. 22, n. 271, Novembro 2022, p. 26. (impresso e digital) Disponível em: <https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/constante-movimento/>. VIGNA, Carolina. Constante movimento. In: Jornal Rascunho, v. 22, n. 271, Novembro 2022, p. 26. (impresso e digital) Disponível em: <https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/constante-movimento/>. VIGNA, Carolina. Constante movimento. In: Jornal Rascunho, v. 22, n. 271, Novembro 2022, p. 26. (impresso e digital) Disponível em: <https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/constante-movimento/>. VIGNA, Carolina. Constante movimento. In: Jornal Rascunho, v. 22, n. 271, Novembro 2022, p. 26. (impresso e digital) Disponível em: <https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/constante-movimento/>.

Às vezes a gente escreve sobre nós mesmos para falar de outra coisa. Às vezes escrevemos sobre outras coisas para falar sobre a gente. A literatura tem isso de maravilhoso: é moldável. De uma certa maneira, mais “plástica” que as artes visuais.

Todas as bicicletas que eu tive é sobre um monte de coisa. Até mesmo sobre bicicletas.

A HQ parece ter sido escrita e desenhada a partir da vivência emocional, real e muito concreta daquela frase do Einstein (ou atribuída a ele, tanto faz nesse caso): “Viver é como andar de bicicleta. É preciso estar em constante movimento para manter o equilíbrio”.

Diz o site da Lote 42, que a autora, Paola Andrea Gaviria, mais conhecida como Powerpaola, é ilustradora, quadrinista e artista plástica. É autora da novela gráfica Vírus tropical, que foi transformada em um filme de animação, e ainda dos livros Por dentro, Todo va a estar bien, Nos vamos, entre outros. Powerpaola também é parte do coletivo Chicks on Comics, fundado em 2008 com oito quadrinistas da Argentina, Colômbia, Holanda e Nova Zelândia. Em 2010, foi premiada pelo projeto En Vitrina, no qual passou quatorze dias detrás de um vidro, desenhando o que via na rua diante de si. Já expôs desenhos, pinturas e diários de viagem em Bogotá, Buenos Aires, Santiago, Nova York, Sydney, Milão, São Paulo e Paris. Como ilustradora, publicou La Madremonte (texto de Enrique Lozano), Costuras (texto de Alejandro Martín) e Sandiliche (texto de Ronaldo Bressane). Atualmente, vive e trabalha em Buenos Aires, depois de ter morado em muitos outros lugares, como Colômbia, França e Austrália. Sua obra trata de temas como sexualidade, feminismo, família e identidade. Ou seja, uma vida heterotópica, tanto em termos de pertencer a muitos lugares quanto de seu fazer profissional, de seu pensamento poético.

Heterotopia é um conceito criado pelo Foucault, que descreve lugares e espaços que funcionam em condições não hegemônicas. A palavra vem de heteros (grego para o diferente) + topia (lugar, espaço). Trago essa referência aqui não (apenas) para dar um polimentozinho teórico ao texto, mas (principalmente) para contextualizar a HQ Todas as bicicletas que eu tive.

A narrativa pensa, justamente, esse espaço que é, também, do outro. Foucault, no texto Outros espaços, heterotopia, se debruça sobre os espaços onde existem relações de poder claras, como prisões, escolas, corpo, sexualidade, etc. Powerpaola é mais sutil mas não menos forte.

Todas as bicicletas que eu tive, assim como Foucault, reflete sobre uma zona de aproximação e de criação no espaço que também pertence ao outro. Aqui, finalmente, a questão da bicicleta se coloca. Se relacionar com o mundo a pé ou de bicicleta implica necessariamente em um outro ritmo, em uma outra fruição de realidade e, portanto, em outro resultado.

Além da Lote 42, estão envolvidas na publicação da HQ as editoras El Fakir (Equador), La Silueta (Colômbia), Musaraña (Argentina) e Sexto Piso (México). Ou seja, o próprio objeto livro é uma metáfora da heterotopia.

A HQ é feita com aguadas de nanquim. Alguns detalhes recebem uma segunda cor, amarelo, à exceção de duas páginas, que trazem um vermelho, citado nos recordatórios:

Não sei muito bem sobre o que falávamos com esses garotos, mas eu tinha me apaixonado pela primeira vez.
Eu me apaixonei pela cor do seu moletom.
Ele o usava sempre.
Era daquele vermelho que só vemos na roupa europeia, nas batinas dos cardeais, nas pinturas rupestres.
Um vermelho Marlboro.
O vermelho que Matisse usava, que é tóxico e que também se associa ao amor.
Não me lembro de nada além disso.

Uma metáfora
Aguadas de nanquim são, assim como andar de bicicleta, uma outra relação com a superfície. O nanquim tem opinião. Não é uma tinta que se deixa domar. A tinta a óleo, por exemplo, desgraçadamente faz exatamente aquilo que a gente pede dela. Ou seja, qualquer erro é do pintor. Aguada — tanto nanquim quanto aquarela — é uma técnica que abraça o movimento e a vontade do material. Então, a forma como a tinta se deita sobre o papel diz respeito ao pintor, à tinta e ao papel. É uma técnica insubmissa. Mais uma metáfora.

A HQ honra o título e conta histórias a partir das bicicletas que a narradora teve. Cada capítulo recebe o nome, a data e a localização das bicicletas. São elas: a chinesa (2003), a Palmirana (1996), a Salvadorenha (2008-2013), Giant II (2014, Bogotá-Buenos Aires), Chopper (1977-1989, Quito), BMX (1989-1992, Quito-Cali), Diamant (2001-2003, Medellín), Mountain (1992-1995, Cali), Aurorita (2013-2017, Buenos Aires). E assim, de bicicleta em bicicleta, de cidade em cidade e fora da ordem cronológica, Powerpaola constrói uma teia de relacionamentos. São cadernos de viagens.

Cadernos (ou diários) de viagens são velhos conhecidos dos artistas. Existem, aí, duas questões: o deslocamento e o desenho.

Primeiro, o deslocamento. Artistas, por natureza, exercem um olhar sobre o mundo com um saudável estranhamento. Explico: quando estamos muito familiarizados com o que vemos, tendemos a não perceber certos detalhes. Em texto, por exemplo, chega uma hora que a gente simplesmente não vê o erro. Nosso cérebro, por já conhecer o conteúdo em mãos, corrige automaticamente o que lê. Por esse motivo é sempre bom contratar um revisor, mesmo que você escreva bem. O mesmo mecanismo existe na informação gráfica/plástica. Para ver, é necessário observar. Para observar, é necessário prestar atenção. Aqui entram, então, os artistas viajantes, os sketchbooks, as residências artísticas, etc. E, junto com esse grupo, os cadernos de viagens.

Segundo, o desenho. Podemos ter registro de nossas viagens em fotografias. Depois da invenção do smartphone, é raro quem não tenha uma foto para mostrar de qualquer tipo de deslocamento. Os mais compulsivos nos mostram nos instagrams da vida fotos até do almoço. Os menos, da última viagem que fizeram. Há um excesso de publicidade da vida, na minha opinião, mas isso sou eu que sou velha, não liguem. De toda forma, o olhar que cria uma fotografia, por mais pensado e artístico que seja, é diferente do olhar que desenha. Notem que não falei pior, falei diferente. A fotografia vai registrar detalhes que o desenho vai perder. Por outro lado, o desenho é escolha. O desenho registra aquilo que você escolheu registrar e, portanto, é fruto de uma reflexão sobre o que se deseja lembrar. O desenho está para a fotografia como a bicicleta está para o carro. São formas muito diferentes de se relacionar com o mundo que nos cerca.

Chegamos, então, na lembrança. Na memória. Nossa memória é construída em camadas, em palimpsestos. Um pensamento híbrido, de texto e imagem, que construa essa memória enquanto vivemos, encontra no caderno de viagem o suporte perfeito. E é isso que Powerpaola faz. É isso que Powerpaola faz, lindamente, de cidade em cidade, de bicicleta em bicicleta.

VIGNA, Carolina. Constante movimento. In: Jornal Rascunho, v. 22, n. 271, Novembro 2022, p. 26.