VIGNA, Carolina. A rebeldia da palavra. In: Rascunho, v. 23, n. 280, Agosto 2023, p. 27 (impresso e digital).
Mukanda Tiodora é uma graphic novel importante dentro do contexto do movimento negro e retrata, com dor e poesia, a dura realidade dos quilombos e da resistência negra no Brasil. Esse aspecto da obra, entretanto, vou deixar àqueles que possuem lugar de fala no assunto.
Aqui ressaltarei o fomento e a importância do letramento e os aspectos gráficos da obra. Que fique claro, entretanto, que reconheço, admiro e aplaudo as outras questões de que trata Marcelo D’Salete nessa publicação.
O posfácio conta com textos da extensa pesquisa realizada. Recomendo começar por ele. A graphic novel é apresentada como uma série de episódios curtos e interligados. Com poucos diálogos e muitas imagens em plano detalhe, o posfácio pode ser um bom aliado na fruição/leitura.
O primeiro texto, da profa. dra. Cristina Wissenbach (USP) é o embasamento teórico mais forte da pesquisa. D’Salete recomenda, em seu posfácio, o livro Sonhos africanos, vivências ladinas e os artigos dessa pesquisadora. Se o sangue acadêmico correr em suas veias, recomendo também os dois livros sobre práticas religiosas e vida cotidiana no Brasil, divididos por período histórico: um vai do século 18 até o 19 e o outro, do final do 19 até o início do 20. Por mais que não sejam citados diretamente, certamente esses títulos também permearam de alguma maneira essa produção, como na menção a “corpo fechado”. É possível perceber a influência de Cristina Wissenbach em toda obra.
O segundo texto do posfácio, do próprio Marcelo D’Salete, intitulado Cartas, becos e vielas, é uma chave importante para a leitura da obra como um todo. Pensando na questão do letramento, destaco:
Cabe recordar que, antes e depois de Tiodora e Claro (1866), houve outros registros de escravizados lidando com a escrita: Esperança Garcia (Piauí, 1770), a reinvindicação dos escravizados do Engenho de Santana (Ilhéus, 1789), os documentos em árabe dos muçulmanos da Revolta dos Malês (Salvador, 1835), a reinvindicação dos mocambeiros de Viana (Maranhão, 1867), a carta dos ex-escravizados da Comissão de Libertos de Paty de Alferes (Rio de Janeiro, 1889). Podemos até mesmo incluir nesse caso a trajetória de Luiz Gama, ex-escravizado que se tornou autor de livros, advogado, jornalista, republicano e abolicionista radical. Esses escritos fazem parte de um universo singular de homens e mulheres ao redor da escrita, mesmo sendo parte do lado mais vilipendiado de uma sociedade escravista, racista e patriarcal. Neste caso, cabe comentar, não estamos citando os diversos escritos em cartas, livros e jornais de pessoas negras já nascidas livres naquele período.
Aqui já começamos a compreender o valor do letramento. Cito, ainda, do texto de Cristina Wissenbach,
No mundo letrado, apesar de não saber ler nem escrever, Teodora é uma observadora atenta e compreende as múltiplas potencialidades que a escrita lhe garante (Fabre, 1985). É possível conjecturar que para ela a escrita é quase mágica, veículo que supera distâncias e desconhecimentos, que revela aos que lhe escutam os meios de concretizar sonhos e, no âmbito das relações escravistas, instrumento que coloca o domínio senhorial em posição quase simétrica a ela: “por que meu pai foi culpado de eu ser vendida / porque Deus não quer que se aparte conga de negro de angola”. […] Embora excepcional, o caso de Teodora, mulher vinda do Congo, encontra ressonância em outras situações presentes na literatura da história da escravidão. A começar pelo fato de que “a Carta”, grafada em maiúscula, sempre foi materialidade que superava o sentido estrito: entre as populações de escravizados e escravizadas, a carta de alforria era a insígnia maior da liberdade e, por isso mesmo, portada e exibida com muito orgulho por todos que a adquiriam.
Na graphic novel, a importância e a rebeldia da palavra escrita também são ressaltadas:
Leva a cara, Joana… E toma cuidado…
A guarda tá passando… Eles não podem ver a gente escrevendo.
Tata, desculpe… Eu preciso entregar essa carta.
Tu sabe escrever?
Mukanda Tiodora resgata o lado transgressor do letramento, da escrita, da comunicação literária. E só por isso já merece sua leitura. Mais ainda, só por isso já merece a adoção em todas as escolas do país. Estou aqui na torcida.
Em algum momento nossos jovens deixaram de ver a leitura como o instrumento de libertação que é. Precisamos resgatar esse sentimento. Precisamos fazer esse trabalho como pais, como professores, como sociedade e como jornal literário.
Em uma época em que alguns de nós cantaram hino para um pneu, é necessário pensarmos não apenas em termos de letramento, mas de compreensão de significado. Como sempre, Paulo Freire estava certo:
Uma das formas de realizarmos este exercício [crítico] consiste na prática que me venho referindo como “leitura da leitura anterior do mundo”, entendendo-se aqui como “leitura do mundo” a “leitura” que precede a leitura da palavra e que perseguindo igualmente a compreensão do objeto se faz no domínio da cotidianidade. A leitura da palavra, fazendo-se também em busca da compreensão do texto e, portanto, dos objetos nele referidos, nos remete agora à leitura anterior do mundo.
Freire é o primeiro a nos lembrar que as leituras de mundo ditas “sensoriais”, ou seja, que não passam por conceitos abstratos, não podem ser desprezadas como “inferiores”, mesmo que não bastem para a instrumentação a que se propõe o letramento.
Tiodora é essa figura que lê o mundo sensorialmente, mas não a partir da significação abstrata do letramento. Sofre com isso. Valoriza isso. Luta por isso. Mukanda Tiodora é muitas coisas, inclusive uma ode ao letramento.
Precisamos recuperar esse valor da leitura como sociedade e, talvez, um caminho possível seja justamente o de histórias como a de Tiodora, a nos mostrar o caráter libertador da leitura com compreensão de significado.
Com poucos diálogos escritos na graphic novel, há aqui uma metalinguagem.
As cenas são construídas com imagens rítmicas e rápidas, em uma mistura de enquadramentos cinematográficos. A obra utiliza muito plano detalhe e closes, quase como um grande storyboard.
Mukanda Tiodora é em preto e branco e está na árvore genealógica de grandes mestres como Frank Miller e Will Eisner. Eu estou do lado do Martin Scorsese a respeito do uso do preto e branco (Black and white is also color in film). Ou ainda, como disse Samuel Fuller, a paleta monocromática nos dá uma noção de realidade muitas vezes mais palpável que em policromia (Life is in color, but black and white is more realistic).
D’Salete sabe bem disso e explora o preto e branco, usando principalmente o alto contraste. É outra metalinguagem. Ou uma metáfora, talvez.
Há uma certa crueza no preto e branco. É, de certa maneira, a dor e a poesia de que falei no início. D’Salete não faz escolhas ingênuas.
Mukanda Tiodora é uma obra com muitas camadas de significação. Este artigo não dá conta de todas e nem se propõe a isso, mas deixa aqui a recomendação de leitura.
Marcelo D’Salete
Veneta
224 págs.
MARCELO D’SALETE
É autor de histórias em quadrinhos, ilustrador e professor. Estudou design gráfico, é graduado em artes plásticas e mestre em história da arte. Publicou o álbum Cumbe (Veneta, 2014), selecionado pelo PNLD Literário de 2018 e premiado no Eisner Awards 2018. Também pela Veneta, publicou Angola Janga – Uma história de Palmares (2017), vencedor do HQMIX, Jabuti e outros prêmios em 2018. Seu trabalho visual já foi exposto no Museu Afro Brasil, no Sesc, na Bienal de Quadrinhos e em vários outros lugares no Brasil, em Angola, Moçambique e Portugal.