As grandes definições (sobre o que é desenho, o que é escultura, o que é uma nação, o que é ou quem é o que for) pertencem a um período do passado onde a geopolítica mundial era polarizada e sabíamos – ou pensávamos que sabíamos – quem era de esquerda, quem era de direita, etc. Falamos hoje de desenho expandido, assim como falamos de realidade aumentada.

A humanidade gosta de se sentir “expandindo” algo, nem que seja a nossa ignorância. O fato é que não sabemos mais e não temos mais certezas. E isso é ótimo. A incerteza é a melhor vacina contra o fascismo.

Pensar as esculturas de Amílcar de Castro como desenhos exige, naturalmente, um pouco de poesia e a compreensão de que o Universo é nossa tela.

O que é o desenho, hoje? É tudo. Ou quase tudo. Qualquer coisa – linha, traço, rabisco, pinclada, borrão, corte, recorte, dobra, ponto, retícula, signos linguísticos e matemáticos, logotipos, assinaturas, datas, dedicatórias, cartas, costura, bordado, rasgaduras, colagens, decalques, frotagens, formas carimbadas.

Conquistada a duras penas sua autonomia, caminha, agora, pelo inespecífico, absorvendo qualidades e características pictóricas, escultóricas, ambientais, performáticas. É madeira, pedra, ferro, plástico, xerox, fotografia, vídeo, projeto, design. É sulco, incisão, impressão, emulsão, cor e massa.

É qualquer coisa feita com não-importa que materiais, técnicas, instrumentos ou suportes. Ou como diz Carmela Grosss, ‘qualquer coisa entre o incerto e o resistente’. O desenhista, hoje, trocou o pequeno pelo grande, as minudências pelo gesto largo e amplo, busca as margens, trabalha o vazio, ativa o branco, grita o silêncio. Pede ao espectador não mais a lupa, mas distâncias: tactilidades visuais. Vai direto ao muro, cria anamorfoses, abandonando qualquer noção de limite. Desenho é tudo.

(MORAIS, 1995 [1])

O grande perigo, entretanto, de ser tudo é que quem é tudo é também o nada. Ser tudo significa, necessariamente, o seu inverso. Este pensamento, quase budista, da inclusão do vazio e do nada dentro do “tudo”, é também um desdobramento da obra de Amílcar de Castro.

Ele desenha o vazio. Suas formas dobradas, recortadas, colossais, são ao mesmo tempo presentes e ausentes. O metal desenha o espaço, recortando não a si próprio mas seu entorno, e o faz com o vazio [2].

Quase toda a obra de Amilcar de Castro se construiu a partir de três procedimentos simples: cortar e dobrar, cortar e deslocar e traçar formas complexas a partir de um movimento ininterrupto do pincel ou instrumento semelhante. Contudo, a qualquer pessoa minimamente familiarizada com seus trabalhos incomodaria o esquematismo dessa descrição. E com motivo.

Porque a experiência proporcionada pelas peças de Amilcar é rigorosamente a reversão da simplicidade e clareza de seu método. Ao abrir com um corte e dobra a superfície de uma chapa de aço, o artista de saída estabelecia uma espacialidade complexa e original.

Toda extensão material baliza um espaço. (…) Contudo, ao incluir a resistência do aço à estrutura das obras – o que se revela magistralmente nas tensões das obras –, Amilcar acrescentou um elemento inédito à formalização construtiva. As torções que organizam as esculturas introduziam diferenças na homogeneidade das lâminas de aço. Na área das dobras, o aço se mostrava de maneira tensa, o que abrandava progressivamente, à medida que as dobras tendiam de novo ao plano.

Sobretudo nas esculturas de grandes dimensões esse movimento de diferenciação das superfícies se transpunha para o espaço que elas modulavam, como se a força empregada nas dobras fosse transmitida a ele.

(NAVES, 2007, p. 108 [3])

O desenho é uma criação humana. Vacas não desenham. A expansão do desenho é, portanto, um reflexo da expansão humana. O corpo que recebe próteses se expande. O Neandertal foi morar em uma caverna para expandir seu corpo, que agora se protegia das intempéries. Criamos agricultura, arquitetura e engenharias mil como extensões de nós mesmos. Inventamos o avião para voarmos, o carro para corrermos, os óculos para enxergarmos melhor.

Exemplos não faltam. Seria tolo supor que a arte não seguiria este caminho.

Em lugar da espacialidade determinada por um corpo humano entendido de forma limitada e instrumental – alto e baixo, direita e esquerda –, elas nos punham em contato com dimensões muito mais plurais e conturbadas, surpreendentes e expansivas. O ar que atravessava as aberturas das obras ou que incidia sobre as chapas magnetizava-se pelo contato com a tensão das dobraduras.

(idem, p. 109)

Amílcar de Castro, ao recortar o vazio, constrói o mundo, pinta o ecossistema, desenha o espaço. Suas esculturas cortam e dobram, mas não o aço. Cortam e dobram o mundo.

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[1] Comentário pessoal: ando fascinada com o vazio. Minhas fotografias são vazias, meus desenhos idem. Pinto o nada. Um dia acordo japonesa.

[2] MORAIS, Frederico. Doze notas sobre o desenho. In: Rio de Janeiro : Jornal da Galeria Nara Roesler, nº1. NOV 1995.

[3] NAVES, Rodrigo. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo : Companhia das Letras, 2007. 532 p. ISBN 978-85-359-1022-3