Não sou barista, mas sou fanática por café ao ponto de ter um blend favorito, prensa francesa em casa e sinceramente notar a diferença entre tipos de grãos. Eu praticamente sustento a franquia de Starbucks aqui perto de casa com o meu consumo semi-industrial de Gold Coast Blend®. Acompanhei, portanto, com interesse o último redesign da identidade visual do Starbucks, que tem uma sirena bicaudata (sereia de 2 caudas) no centro.
A primeira figura mitológica metade pessoa, metade peixe de que se tem registro era homem. Um tritão, portanto. Foi o deus Oannes, que pertence à mitologia da Mesopotânia, de 5000 anos atrás. Ele saía todo dia do mar para ensinar artes e ciências à população do Golfo Pérsico que, na época, era o que se considerava “toda a humanidade”. Alguns milênios depois, na mitologia grega, “tritão” se tornou nome próprio. O Tritão, filho de Poseidon e Anfitrite, é um deus marinho. Assim como acontece hoje com algumas marcas famosas (Gilette, Bombril, Perfex, etc), o nome próprio se tornou sinônimo do objeto em si. Tritão, hoje, é entendido na maioria das vezes como sendo o deus e poucas pessoas usam a palavra como o masculino de sereia. Na mitologia grega, as pessoas-peixe são sempre masculinas. As divindades aquáticas são ninfas e não possuem caudas ou escamas.
As sereias eram, originalmente, metade mulher, metade pássaro e é esta a origem da sua linda voz. Tinham grandes asas, garras e penas nas pernas. Acredita-se que a versão peixe surgiu em um bestiário do século V chamado Physiologus, escrito em grego e de autor desconhecido, que teve uma tradução para o latim muito popular. Na Idade Média ainda vemos híbridos das duas versões e existem muitas sereias esculpidas em tumbas com asas. O mito de que atraíam marinheiros para a morte com seu canto é comum às duas versões. A Odisséia, certamente a estória mais conhecida envolvendo estes seres míticos, já foi retratada tanto com mulheres-peixe quanto com mulheres-pássaro.
Segundo o blog do Starbucks, a origem da sereia deles é uma xilogravura norueguesa do século XVI mas todas as referências que encontrei falam desta gravura como sendo do século XV. De toda forma é anterior à internet. O que acho interessante é como uma gravura de no mínimo 5 séculos de idade ainda pode render tanto. A mitologia sobre sereias é vasta e atinge diversas culturas, inclusive a nossa. Em algumas vertentes da Umbanda, Iemanjá é representada como uma sereia. É uma imagem forte de um mito presente em várias civilizações diferentes. Muito apropriado para uma multinacional. Se vamos usar um ícone existente, é sempre uma boa idéia escolher um que seja compreendido em qualquer lugar do mundo e por um longo período de tempo.
A sereia do Starbucks sofreu um processo de vários redesigns para se tornar menos sexual. Primeiro teve os seios cobertos pelos cabelos e depois perdeu o umbigo. Deixo para vocês a interpretação da posição em que a bicaudata segura as suas caudas, minimizada pelo enquadramento que gradativamente saiu de um plano médio para o close.
Edições moralistas na arte não são incomuns. O MASP recentemente fez um brilhante trabalho de restauro no quadro Himeneu Travestido Assistindo a uma Dança em Honra a Príapo, de Nicolas Poussin (1594-1665). Uma das etapas do restauro foi retirar o repinte de pudor do falo de Príapo. A cena do quadro é um ritual pagão de fertilidade. Acredita-se que a censura tenha ocorrido no século XVIII, quando estava em posse da família real espanhola. O quadro pertence hoje ao acervo do museu. Então, se Poussin sofreu um, digamos, redesign pudico, imagine uma identidade visual de cunho 100% comercial.
Agora em março, no seu 40º aniversário, o Starbucks decidiu tirar o nome escrito e adotou uma marca sem texto, apenas com imagem.
É no mínimo uma atitude ousada retirar o nome da identidade visual mas atenção, crianças: não façam isso em casa! Algo assim só é possível com um branding muito forte, como os das empresas Nike, Apple, Volkswagen e, acredito, Starbucks.
VIGNA-MARÚ, Carolina. Café com sereias. Revista Web Design, Rio de Janeiro, 01 mar. 2011.