Um dia desses vou escrever uma História da Arte a partir da Morte. É um tema que me fascina há muito. O primeiro “artigo” que publiquei na vida, nos Cadernos de psicanálise da Sociedade de Psicologia Clínica do Instituto de Psicanálise (maio de 1984), ainda pré-adolescente, escrito aos 12 anos e publicado aos 13 anos de idade, foi sobre a morte. É uma bobagem própria de alguém com 12 anos, mas demonstra a antiguidade da minha obsessão com o tema.
O bom é que eu não estou sozinha nessa. O Egito Antigo construiu toda uma civilização e uma cultura em torno de tentar vencer a morte. E quem nunca?
Os romanos – como em O Sacro Império Romano-Germânico – consideravam que a gente só morria de verdade mesmo quando era esquecido. Para morrer, era preciso entrar em contato com as águas do rio Lete, o rio do esquecimento. O Lete fica no Hades, o gélido submundo greco-romano. Esse negócio de inferno quentinho é bem mais recente.
Com o passar do tempo, essa preocupação passou também à aparência e criamos um mercado consumidor de cirurgias plásticas, cosméticos e maquiagem. Atire a primeira pedra quem nunca comprou um creminho, ah vá.
Entretanto, é recente a preocupação de que talvez, só assim talvez, a gente não seja tão importante para o planeta e que hmm, veja você, há uma forte possibilidade da nossa espécie ser extinta por ação autoinfligida.
Não que isso mude o mundo, mas a “palavra do ano” de 2019 do Dicionário Oxford é “emergência climática”. Não muda, mas é um indicativo relevante.
Um dos movimentos organizados de preservação ecológica mais antigos do mundo, o Conservation Movement (EUA), foi fundado em 1890. O Greenpeace foi fundado em 1976. Isso foi ontem.
A própria Ecologia como ciência é recente. É dos anos 1700 e alguma coisa. Segundo a enciclopédia, consideramos como pioneiros o microscopista Antoni van Leeuwenhoek (1632–1723) e o botânico Richard Bradley (1688-1732).
Sim, eu sei que 1700s aconteceu tem séculos, literalmente, mas em termos de história humana isso não é nada. É um piscar de olhos. Pouco tempo atrás nós ainda estávamos queimando bruxas na fogueira ou afirmando que a Terra é plana. Não, pera.
J.-H. Rosny aîné nasceu em 1856 e faleceu em 1940. No entanto, seu livro A morte da Terra chega a assustar de tão atual. Sua primeira publicação, em 1910, tem o mérito de ter sido a primeira, obviamente, mas teve a infelicidade de não contar com o prefácio do Mia Couto e o posfácio do Eduardo Bueno.
Mia Couto que, aliás, é biólogo por formação, nos lembra de nossa fragilidade enquanto espécie, antes mesmo de mergulharmos na estranhamente próxima história de Rosny:
A Terra pode morrer. A Humanidade pode desaparecer. O Futuro não é um tempo garantido. Estes são avisos que nos chegam a partir de vozes que povoam este livro. São vozes de gente estranha com nomes estranhos. Vozes que parecem distantes no tempo. Mas que são vozes nossas, que habitam o nosso tempo presente e que carregam temores que são bem atuais. (p. 8)
Mia Couto ainda nos conta sobre uma alteração do autor que modifica o livro inteiro.
Não creio que Rosny desejasse ser o autor de uma profecia apocalíptica. A Morte da Terra apresenta-se como uma simples história, redigida com um brilho e talento inigualáveis. O autor acreditaria realmente nessa anunciada morte cósmica?
Sabemos das suas hesitações. Numa primeira versão, o escritor terminava o livro assim de modo que, digamos, corresponde ao tom do título. Depois, numa versão posterior, como se entendesse salvar a sua própria esperança, o escritor acrescentou uma derradeira frase. (p. 9)
Confesso que aqui, do alto do meu pessimismo com a nossa espécie, eu prefiro a versão sem o acréscimo do autor. Além do que, fiquei com um sabor estranho na boca, como se fosse algum tipo de censura ou retrocesso.
A história conta a morte da humanidade, mais do que do planeta. O planeta padece pela falta de água, mas outras possibilidades de vida se apresentam, especialmente umas “estranhas criaturas magnéticas que se multiplicavam no planeta enquanto a humanidade declinava” (p. 20). Ou seja, quem morre somos nós, não a Terra como um todo.
Temos essa mania de achar que somos importantes ao ponto de, com o nosso fim, decretarmos o fim do planeta inteiro. Nós bem que tentamos, destruindo o ambiente e outras espécies, mas não somos tão competentes assim, felizmente.
Rosny chega ao ponto de esfregar na nossa cara, mais de um século atrás, o que fazemos hoje e para onde nossas ações atuais nos conduzirão:
A sombra da decadência precedera de longe as catástrofes. Em épocas muito distantes, nos primeiros tempos da era radioativa, já se observava a diminuição das águas: muitos cientistas previam que a humanidade morreria devido à seca. Mas que efeito essas previsões podiam ter sobre povos que viam montanhas cobertas de geleiras, inúmeros rios percorrendo as terras, mares imensos banhando os continentes? (pp. 27-28)
Ou seja, o autor descreve com precisão a turma que nega o aquecimento global. A surpresa é ele não falar nada sobre os terraplanistas.
Em um registro um pouco mais pitoresco, Rosny também prevê o celular: “Targ levaria um ondífero móvel, que podia receber e transmitir a voz humana a mais de mil quilômetros.” (p. 99)
Ainda não conseguimos controlar a fusão atômica, como fazemos com a fissão, mas Rosny parece otimista a respeito da física nuclear: “O vencedor se apoderou até mesmo da força misteriosa que une os átomos.” (p. 119)
Por curiosidade, algumas datas: o livro é de 1910. Em 1938, Otto Hahn e Fritz Straßmann descobrem a fissão nuclear. Em 1942, o projeto Manhattan, na Universidade de Chicago, consegue realizar a primeira reação em cadeia de fissão nuclear. O objetivo deles era construir a primeira bomba atômica. A vida imita a arte.
Rosny tem o meu senso de humor. Por vários momentos até parece que o autor trabalhou na política brasileira: “Os Últimos Homens tinham uma sensibilidade limitada e quase nenhuma imaginação.” (p. 17)
O que mais me impressionou em A Morte da Terra não foi exatamente uma descrição possível de nosso fim, mas uma descrição muito apurada e atual de como morremos em vida:
Mas ninguém acreditava que os homens do Terras Vermelhas fossem passíveis de pânico, seu temperamento era ainda menos emotivo que o do Fontes Altas: capazes de tristeza, eram incapazes de pavor. (p. 21)
Lembra que eu comentei que meu primeiro texto publicado foi sobre a morte? Era exatamente sobre essa ideia, de que se não nos emocionamos, se não permitimos que a vida nos invada, é mais ou menos a mesma porcaria que estarmos já mortos. Eu era pré-adolescente, relevem a falta de profundidade de pensamento. Ainda assim, é uma questão que me impacta desde sempre. Rosny descreve essa sensação melhor do que qualquer tratado psicanalítico:
As pessoas passaram a viver num estado de doce, triste e extrema passividade. O espírito de criação extinguiu-se, ou só se manteve, por temperamento, em alguns indivíduos. De seleção em seleção, a humanidade adquiriu uma vocação para a obediência automática, e, portanto, perfeita, às leis imutáveis. A paixão se tornou rara, o crime inexistente. (p. 31)
(…) Assim, nada vinha abalar a apatia dos Últimos Homens. Os que melhor escapavam do marasmo geral eram os indivíduos menos emotivos, que nunca tinham amado ninguém, nem a si próprios. Estes, perfeitamente adaptados às leis milenares, demonstravam uma perseverança monótona, alheios a todas as alegrias e a todos os pesares. A inércia os dominava: evitavam a depressão excessiva e as decisões bruscas. Eles eram o produto perfeito de uma espécie condenada. (pp. 79-80)
Ou seja, é a geração Homer Simpson, que se satisfaz com a rotina trabalho-televisão-cerveja. Já eu aqui estou com o Ferreira Gullar: a arte existe porque a vida não basta. Chamo a atenção para o trecho “produto perfeito de uma espécie condenada”. Rosny fala da espécie como um todo, mas podemos extrapolar esse conceito para outras áreas, como classes trabalhistas, eleitores ou qualquer outro segmento da sociedade. Nossa passividade nos condena.
Sobre o autor:
Pioneiro da ficção científica, Joseph Henri Honoré Boex escreveu junto com seu irmão Justin François Boex, sob o pseudônimo J. H. Rosny. Com o fim da parceria em 1909, Joseph Boex continuou a escrever como Rosny aîné (Rosny mais velho), enquanto seu irmão passou a usar J. H. Rosny jeune (Rosny mais jovem).
H. Rosny aîné escreveu sozinho 106 livros e, com o irmão, outros 47. A grande maioria é um tanto quanto apocalíptica ou, como diz Eduardo Bueno no posfácio, “sob tons crepusculares”.
Trechos:
Os homens dessa poderosa época tiveram uma vida árida. A poesia magnífica e misteriosa estava morta. Não havia mais vida selvagem, nem mesmo as antigas terras quase livres, que formavam os bosques, as charnecas, os pântanos, as estepes e as campinas da era radioativa. O suicídio acabou sendo a mais temível doença da espécie. (p. 29)
A eutanásia era extremamente suave. Depois que os condenados ingeriam venenos maravilhosos, todo medo desaparecia. Os últimos dias eram um êxtase permanente, as noites eram sonos profundos como a morte. A ideia do vazio os deslumbrava, a alegria crescia até chegar ao torpor final. (p. 68)
Artigo publicado no Jornal Rascunho, n. 237, janeiro de 2020.