artigo publicado na revista Autor – Cultura/Ano IV – nº 40 – Outubro de 2004
artigo publicado na Revista Digital Art& – ISSN 1806-2962 – Ano II – Número 02 – Outubro de 2004

Velázquez

Aprendi a gostar de Velázquez com minha mãe. Ele tem uma calma que só era possível no século XVII. Foi preparado pelos pais, desde os 12 anos de idade, para ser pintor, indo estudar com Francisco de Herrera, o Velho1. Acabou saindo de lá porque o Velho era irreverente demais para ele. Estudou nas melhores escolas e, filho de pais pertencentes à pequena nobreza, não teve problemas para trabalhar na corte de Filipe IV2. A corte, no entanto, era péssima pagadora e Velázquez acabou fazendo outros trabalhos pequenos aqui e ali para se sustentar. Acabou nomeado aposentador-mor do palácio, em 1652, meio que uma forma de Filipe IV mantê-lo ali mesmo lhe devendo dinheiro. Sempre senti em Velázquez uma certa mentira; de repente, o sonho da vida do cara era outro e ele acabou ficando nessa história de pintura para atender a um desejo de seus pais. Depois de sair do atelier do Velho, foi estudar com Francisco Pacheco, seu futuro sogro, que era um pintor medíocre, mas com quem conseguia manter uma relação pacífica e morna. Velázquez tinha essa superfície calma e sob controle para revelar sua vida e força somente em suas pinceladas disformes e cruas na tela.
Suas pinturas não têm linhas, são manchas de cor e luz, pura e simplesmente. Desta água, com certeza bebeu o Impressionismo. Ele vem do preto ou, na pior das hipóteses, de outro tom neutro, e aí é luz para tudo que é lado. Se algum dia você tiver a oportunidade de estar tête à tête com um quadro dele, repare bem como o quadro brilha. Imagine, então, os séculos e séculos de desgaste da tinta, de poeira, de manuseio, de armazenagens duvidosas. Olhe para o quadro de novo. É impressionante mesmo. A paixão está toda na tinta, no erro, no incontido, no involuntário. O mais bonito é a ausência da forma rígida que só em seu conjunto, e quando vista como um todo, se transforma no objeto retratado. A pincelada crua na tela, sem uma marcação anterior, sem um guia, sem uma linha, é quase a sua libertação. É como se pintasse a independência da nobreza decadente a que servia. Reparem nos detalhes; a vida está nos detalhes. Foi, ainda vivo, considerado como “o” grande realista e suas obras, a maior expressão da verdade. Um de seus retratados, Papa Inocêncio X3, considerou o seu quadro troppo vero4. Toda essa veracidade, todo esse realismo visual não tem em si a forma, daí a mentira, a ausência do que há lá. A forma dele, perfeita, é composta pelo nada, ou melhor, por cor e luz somente; a forma perfeita não é uma forma perfeita em sua essência.
As Meninas teve 44 versões por Picasso. A homenagem que eu mais gosto é a do Goya, que pintou A Família de Carlos IV5 se colocando também à esquerda, atrás de uma tela, da mesma forma impassível e sem envolvimento – típica de um retratista barroco – como forma e mecanismo de crítica, talvez o único possível na época, ao mesmo sistema de poder ao qual seu antecessor serviu. As Meninas é, na composição, uma série de triângulos e, com isso, Velázquez impõe ao quadro e aos seus personagens um equilíbrio matemático e, com esse formalismo, coloca reflexos do tempo, com versões do retrato, seu auto-retrato, o reflexo da rainha e do rei no espelho e o retrato de corpo inteiro de um membro subalterno da corte em uma presença mais marcante que a do rei e a da rainha. Nos reflexos triangulados de Velázquez existe a sua crítica. Uma apresentação formal e rígida para agradar aos seus clientes e, ao mesmo tempo, a irreverência e a não-existência da forma em suas pinceladas. Tem também o fato de que “meninas” eram as babás, e não os nobres; portanto, o quadro, teoricamente um retrato da princesa Margarita, tem como título a classe servidora.
Velázquez nunca pintou um objeto. Velázquez nunca pintou uma pessoa. Velázquez pintava a luz que se refletia nos objetos e nas pessoas. E eu acho que isso é um statement.
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1 Francisco de Herrera, O Velho (1576-1656). Pintor e gravurista espanhol. Seus trabalhos marcam a passagem do Maneirismo para o Barroco.
2 Filipe IV de Espanha e III de Portugal (1605-1665). Ele foi o rei que distribuiu as capitanias do Brasil e marcou os foros dos donatários.
3 O Papa Inocêncio X nasceu Giambattista Pamphili, em 1574, foi nomeado cardeal em 1629 e manteve o Sumo Pontífice de 1644 a 1655. Faleceu em 1655.
4 Troppo vero, expressão italiana que significa algo exageradamente verdadeiro.
5 Carlos IV, rei da Espanha. Carlota Joaquina, sua filha, casou-se com D. João VI. Carlos IV era rei na época de Goya. O quadro As Meninas retrata a filha de Filipe IV.
Bibliografia
1 – STRICKLAND, Carol & BOSWELL, John. Arte Comentada: da Pré-História ao Pós-Moderno. 2ª ed., Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
2 – WOLF, Norbert. Velázquez. Köln (Alemanha): Taschen, 2000.