Falar de Harvey: como me tornei invisível como um livro sensível ou poético é diminuí-lo. Assim como toda grande obra, transcende classificações, categorizações e, principalmente, adjetivos. O premiado livro de Hervé Bouchard, lindamente ilustrado por Janice Nadeau, trata da morte da figura paterna. Mas isso é uma informação que o Google resolve.
O autor nos leva a uma associação de sensações transponível para qualquer momento importante de nossas vidas.
Eu sinto calor e tenho a impressão de que as mangas de meu casaco de couro se esticam. Mas a primeira primavera é também a estação das corridas nas sarjetas. E é também a estação em que Cantin e eu perdemos papai Bouillon. E é a época em que eu fiquei invisível. É muita coisa para contar.
O menino brinca com palitos. O seu palito tem um pontinho. Este pontinho faz com que ele seja Scott Carey. A simbologia de Scott Carey, o herói do filme O incrível homem que encolheu (The incredible shrinking man, 1957), é também um prenúncio do que sentimos frente a uma perda tão significativa quanto esta. Nos diminuímos, nos encolhemos.
Harvey e seu irmão Cantin perdem o pai. O que Harvey deseja, entretanto, é que, mesmo morto, o pai o veja. Há mais neste ver. Existimos quando somos percebidos. O fenômeno — da fenomenologia, a existência — só pode se transformar em conhecimento através da linguagem. Ou seja, é necessário significar (transformar em signo) algo para que este algo passe a existir para nós. Veja bem: não é passar a existir, é passar a existir para nós. E é isso que Harvey deseja, ele quer certificar-se de que existe para o pai morto. Ele precisa ser visto.
O pai morto não o vê. E então Harvey torna-se invisível. Ele depende deste olhar — o olhar do Outro — para formar juízo sobre si próprio. Quando não encontra este olhar, percebe-se invisível.
Hervé Bouchard (1963) é canadense de Québec. Mais especificamente, de Arvida, uma vila industrial onde corridas de palitos na sarjeta são perfeitamente possíveis. Ele é também professor de literatura. Bouchard tem clara influência da fase mais minimalista de Samuel Beckett (1906-1989). Outros livros anteriores seus, como o seu décimo romance Parents et amis sont invités à y assister, também receberam prêmios e honrarias, mas foi com Harvey que seu nome atravessou mais fronteiras. Não sabemos o quanto há de biográfico em seus livros e, sinceramente, não importa. A tomada de consciência de que trata Harvey nos diz respeito diretamente. Nos tornamos invisíveis em muitos momentos. Uma injustiça trabalhista, uma separação conjugal, a perda de perspectiva, toda vez que nos calamos. Calar-se é se colocar na invisibilidade, é aniquilar o que há de essencial. A impossibilidade de acessar o Outro — som ou imagem, tanto faz — é a perda mais profunda porque não há como revertê-la.
E temos ainda as ilustrações de Janice Nadeau. Nadeau não é redundante. As imagens, como devem ser mas raramente são, oferecem uma leitura a mais. Nos dão uma emoção complementar e nem um pouco óbvia deste tornar-se invisível.
Segundo Victor Chklóvski, o objetivo da imagem não é tornar mais próxima de nossa compreensão a significação que ela traz, mas criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão e não o seu reconhecimento.
Chklóvski referia-se à fotografia, mas o raciocínio pode ser ampliado. O livro ilustrado tem como maior desafio colocar-se como um apoio à literatura sem nem brigar com ela e nem repeti-la. E isso não é um desafio pequeno. Nadeau, com sua narrativa quase cinematográfica, dá aquela cutucada na ferida aberta por Bouchard.
A perda de que Harvey fala é muito maior do que a morte. Falar dele como um livro sensível ou poético é diminuí-lo.
Publicado no Jornal Rascunho de abril de 2014