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O desenho inacabado existe desde que o mundo é humano e as cavernas habitadas, mas o sketch como forma representativa dotada de algum valor – e não mais como apenas uma etapa descartável de um outro produto, como a pintura ou a escultura – só começou a existir no início da Renascença, durante o Quattrocento.

Até a Idade Média o artista era considerado não como um autor mas como um artesão servil ou, no melhor dos casos, como um canal entre o divino e a matéria, que por sua vez representava este divino. Era extremamente comum, por exemplo, o artista não assinar suas obras.

A idéia do gênio nasce junto com a propriedade intelectual, bem como o desejo pela originalidade e a individualidade do artista.

Gênio era aquele capaz de transformar um conceito (etéreo) em algo realizado com sucesso (matéria).

O conceito da arte como tradução entre mundos considerados distintos, o plano da alma e o plano do palpável, acompanhou a humanidade até bem recentemente quando, em meados do século XIX, surgiu o conceito de ars gratia artis (a arte pela arte) ou seja, uma arte autônoma e que pode ser apreciada por seu prazer estético puramente e não mais apenas e/ou necessariamente por seu valor representativo ou de tradução entre a ideia e a matéria.

A relação com o sagrado continuou na Renascença, tanto que Michelangelo acreditava que a criatividade era uma inspiração divina. O que mudou foi a noção do papel do artista. Ainda que inspirado pelo(s) deus(es), o artista passa a ser um intérprete único e seu dom é entendido como determinante para que a obra evolua daquela determinada forma. Ou seja, nasce o conceito de traço.

O passo mais importante na distinção entre os gênios foi a noção da realização, aquilo que une o desejo ou a ideia e o sucesso em criar aquilo imaginado. Esta capacidade é o que os torna únicos e, portanto, autores de suas obras.

É natural compreender, portanto, que o rascunho ou o sketch – então chamado de bozzetto – assuma um papel fundamental pois é ele que comprova esta ligação entre a ideia e o ato realizado. Tornaram-se registros inquestionáveis do processo artístico e eram considerados e apreciados como uma forma única de arte, mesmo sabendo-se inacabada, porque demonstravam o subjetivo, o plano das idéias dos gênios.

Observar um sketch de um destes gênios era o mesmo que abrir uma janela para os seus processos criativos.

Isto não significa que antes do Renascimento não faziam sketches, significa apenas que, por não serem apreciados, não foram conservados.

Os desenhos mais famosos deste período (na verdade um século depois, já no Cinquecento) são sem dúvida alguma os de Leonardo Da Vinci (1452-1519). Prometo que resistirei à tentação de escrever mais uma das incontáveis odes à genialidade e versatilidade de Leonardo, já que seus fãs e estudiosos são em maior número e competência e que as referências podem ser facilmente encontradas online.

Algo que talvez não seja tão conhecimento comum assim é que Leonardo jamais saía de casa sem o seu sketchbook.

Hoje, 500 anos depois, o sketch é uma forma de arte reconhecida, independente se parte de um processo ainda inacabado ou como resultado final do traço pretendido. Existem inclusive bons workshops e até mesmo eventos mundiais organizados em torno do sketch, como o Sketchcrawl.

Você não precisa de material caro ou nada complicado para começar. Bastam poucas folhas de papel sem pauta e algo que escreva (lápis, caneta, tinta e pincel, tanto faz). O desenho de observação mais rápido, como de alguém passando na rua, precisa de um pouco mais de prática mas você pode começar com modelos mais pacientes. As estátuas, por exemplo. Se até o Leonardo desenhou o David, de Michelangelo, você também pode.

Apenas dê preferência a estátuas do que a fotografias de estátuas. É impossível dar a volta na fotografia para observar melhor um detalhe.

Outros bons e pacientes modelos são árvores, que apesar de esperarem você terminar o desenho com bastante calma, têm formas orgânicas e complexas e podem resultar em desenhos ricos e interessantes. E, claro, quando você estiver um pouco mais afiado, transforme o tempo perdido na condução em tempo ganho de desenho ou então aquele almoço solitário em uma boa oportunidade artística.

Leonardo da Vinci terminou 12 pinturas e milhares de desenhos. Esta informação, por si só, já deveria ser suficiente para explicar seu processo criativo. Os rascunhos – tanto os gráficos quanto os escritos – são a origem do pensamento e da criação. Ninguém projeta alguma coisa sem desenhá-la antes. O desenho é o princípio, a ideia, o conceito, é a “alma” da criação gráfica. As técnicas evoluem mas um bom desenho será sempre um bom desenho.

Os gregos consideravam como “clássico” tudo aquilo digno de ser copiado. Leonardo é um clássico. Pegue logo o seu sketchbook e comece a desenhar por aí! Está esperando o quê?

 

VIGNA-MARÚ, Carolina. Rascunhos. Revista Web Design, Rio de Janeiro, p. 98 – 99, 01 jun. 2009.