E lá vamos nós para o sexto março de 2020. Tenho um afeto muito especial por agosto, por ter sido o mês em que me tornei mãe. Sempre que falo algo parecido com isso, lembro de uma tirinha da Mafalda em que, numa briga sobre sopa (é claro), ela diz para mãe que as duas se graduaram no mesmo dia. Essa tirinha mente. O filho se gradua como filho no dia em que nasce. A gente vai aprendendo todo dia. É a graduação mais demorada do planeta. Estou indo para 19 anos de estudos intensivos e ainda sei muito pouco.

Não sei o que determinados sintomas significam, preciso do pediatra.

Não sei configurar o PlayStation, felizmente as crianças sabem.

Não sei montar um beliche, trocar um encanamento, puxar uma instalação elétrica, consertar a máquina de lavar. Não sei essas coisas que minha geração aprendeu como sendo “de homem”. Não tem mais “homem”, optou por outros rumos de menos idade. Então, improviso.

Não sei fazer bolo-formigueiro-com-cobertura-de-dálmata-mamãe-por-favor, improviso.

Não sei o que fazer com um coração partido, um casaco de estimação perdido, um pé quebrado, um celular roubado. Improviso.

Improviso muita coisa. Suspeito que toda mãe.

Mal sei somar, não consigo ajudar na lição de matemática. O que tenho para oferecer academicamente é inútil na escola. Acho mesmo que o que tenho para oferecer de uma forma geral, na vida, é inútil. O inútil é o que eu tenho de melhor.

Não sei tampouco, por exemplo, o que leva uma espécie a ter tão pouco respeito pelos esforços evolutivos de outra. A fruta do conde, por exemplo, fez absolutamente de tudo para não ser comida. Protege a semente dentro de gomos que, por sua vez, possuem uma casca feia, dura, que mais parece uma tartaruga que deu muito errado. O que o ser humano faz? Vai lá, pega a fruta, espera pacientemente aquele intervalo de 3 dias em que está no ponto, nem verde, nem passada, destrói a casca, abre os gomos e cospe a semente fora. A semente. Exatamente aquilo que a planta levou milhões de anos para proteger. Nem para levar a semente para longe, como os passarinhos fazem, nós servimos.

A inutilidade não é só minha. O Ultraje a rigor tinha razão.

Por outro lado, tem umas espécies no mundo por quem simplesmente perdemos o respeito. Nós fomos evolutivamente treinados, durante os últimos 50 mil anos, para entender animais muito coloridos como perigosos. E normalmente são mesmo. Então algumas espécies, por conta disso, mimetizaram uma policromia que Pancrom nenhuma põe defeito. É uma mentira contada muitas vezes, na esperança de se tornar verdade. Mas tem uns mentirosos que a gente já sacou. Não cola. A borboleta, por exemplo. Ou a joaninha. Sem tempo, irmão.

Por falar em instintos e maternidade, nosso instinto é o de preservação da espécie. Ou seja, devemos procriar. É necessária uma aldeia inteira para criar um filho é mais do que um provérbio suahíli. Acontece que, na contemporaneidade, se tornou trabalho de um casal ou, muitas vezes, de uma única pessoa. Na maioria das vezes, essa única pessoa é uma mulher. Há uma solidão intrínseca em ser mulher. Uma solidão que permeia todas as gerações, nacionalidades, credos, sexualidades, etnias e momento histórico.

E é esse o meu lugar de fala. O da mulher que cria filho sozinha. Quis muito esse filho. Ele foi desejado e esperado. Mas olha, eu entendo quem não quer. Essa é uma metamorfose irreversível e a gente não se engana mais pelas cores da borboleta.

 

Crônica publicada na Revista Pessoa, em 11 de agosto de 2020.

Revista Pessoa
ISSN 21791929
Lisboa