Eu sabia. Ele tinha morrido velho, decrépito, doente. Causas naturais, disseram os médicos, mas eu sabia. Eu sabia que ela o tinha matado. Foi um lance rápido. Não andava mais, não falava mais, comia uma papinha nojenta com canudinho, usava fraldas, era pele e osso. Ele olhou para ela. O olhar pedia perdão e ela sabia. Ela sorriu. E não perdoou. Em seu rosto era possível ver simultaneamente o nojo e a felicidade. Enfim aquele desgraçado morria. Ela riu. Ela riu um riso delator. Foi nesse instante que eu soube. Eu tinha dois problemas: o como e o onde. O porquê eu sabia.

Uma pilha de louça acumulada na pia da cozinha. Eu é que não ia lavar louça de um defunto. Tinha também a lata de lixo cheia e a xícara de café da enfermeira esquecida do lado do sofá. Era muito estranha essa percepção do lixo deixado pelo humano que morreu. O lixo de um morto é mais vivo – e portanto menos lixo — que o morto. Ou, se preferir, o lixo de um morto é menos lixo — e portanto mais vivo — que o morto. Tanto faz.

Levanto, ela me segue com os olhos, nem menção de ajudar. Deve ser meio triste esse negócio de matar e não poder contar, não poder celebrar. Apesar de que deve existir algum tipo de ranking de assassinatos e com certeza matar um velho doente que não consegue mais falar deve ser tipo um assassinato for dummies. Não importa. Para ela, que não era uma profissional, foi um feito e tanto. E ela lá, sentada no sofá olhando para o nada de luz que entra, gloriosa, pela janela aberta. Tão muda quanto seu morto. Um canto de boca que sorri é suficiente. Um pedacinho de pele que se recusou a ser domado pela sobriedade que a ocasião pedia. O curioso é que não tem um único vivo nesta casa que não preferia estar dançando e cantando. Maldito país católico.

E nós lá. Fazendo sala um pro outro, e todos fazendo sala para o cadáver.

Olhei fixamente para ela, até que meu olhar pesasse sobre seu ombro. Quando virou, perguntei diretamente.

— Como e onde?

— Aqui mesmo nesta sala, bem aí onde você está sentada. O como você vai ter que descobrir sozinha.

— Você sabe o que eu te perguntei?

— Sei, você quer saber como eu matei o seu pai.

— Você fala seu pai como se não fosse nosso.

— Prefiro não lembrar. Não vai agradecer, não, ô mal educada?

— Obrigada.

— Não tem de quê, querida.

— Conta o como.

— Não.

O homem da Santa Casa começa a falar algo. Eu não entendo. Eu nunca entendo. E ele olha para cima. Olhei umas duas ou três vezes preocupada se a infiltração do apartamento da Dona Josefina tinha voltado até entender que ele estava olhando mais pra cima, com visão de raio X, através de toda a estrutura do prédio, direto para Deus Nosso Senhor Todo Poderoso Mais Alguma Coisa Que Eu Não Lembro. E o homem continuou falando, continuou olhando para além da antena parabólica e eu continuei não entendendo. Até que, finalmente, por alguma iluminação divina — não foi goteira, não, engraçadinho — eu consegui perceber que deveria escrever um cheque. Era sobre dinheiro. Sempre é.

— Envenenamento?

— Não ofenda minha criatividade.

Algo sobre as roupas. Nós precisávamos decidir com que roupas o defunto seria cremado. Na minha cabeça monto um diálogo sobre a importância de boas roupas para as minhocas e da incompreensão de roupas para o fogo mas limito-me a, de saco cheio, levantar minha bunda gorda dali e me arrastar até o quarto ao lado. Passo pelo cadáver para chegar ao armário. Escolho algo sem olhar. Não devo ter feito um bom trabalho porque ouvi algo como coitadinha e o rápido abrir e fechar da porta de armário, seguido de outro coitadinha. Pra que diabos me chamaram então, mas os diálogos funcionam muito melhor em pensamento.

— Você nem se levanta?

— Você não aprende? Qualquer opinião que tivéssemos dito, qualquer roupa que tivéssemos escolhido, seria ignorada. Poderíamos ter escolhido a melhor roupa do mundo que mamãe ia conseguir justificar para si e para o mundo que o ideal mesmo era que ele fosse cremado em uma fantasia bondage.

— Eles não teriam se separado se ele tivesse uma fantasia bondage, aposto.

— Ou se ela tivesse humor.

— Verdade. Isso merece um champagne.

— Talvez, só assim talvez, pegue um pouco mal a gente abrir um Brüt nesse momento.

— Trago em copo de refrigerante.

Mamãe entra. Ela sabe. Pede um gole. Diz que ótimo guaraná. E sai. Entrou só para isso. Entrou só para dizer eu sei. Toca um pagode no vizinho.

— Juro que um dia…

— Eu sei. Não foi inocentemente que ela o aguentou por quase 40 anos.

— Aguentar e copiar são coisas diferentes.

— Bobagem. Um não existe sem o outro.

Levanto. Acendo um cigarro. Preciso me afastar antes que aconteça mais uma morte em família.

— Vou comprar pão.

— Me traz um chiclete, daquele amarelinho que eu gosto.

Bate sol na rua, o que é muito estranho. Sol é o oposto de fungo, sol é antídoto para mofo. Tudo que sinto, no entanto, é mofo. Deixei que minha família colocasse seus esporos dentro de mim. Pego sol. Bebo uma cerveja, em pé, em um boteco cheio de homens sujos. Saudades dos homens sujos. Fumo outro cigarro. Compro uma pastilha de menta e um chiclete de sei lá o quê. Subo. Esqueço do pão. Volto. Compro o pão que ninguém quer. Subo de novo.

— Olha, não é que você trouxe pão mesmo?

— Só de sacanagem comprei integral, que ninguém gosta.

— Você ainda fuma?

— Sim, eu sou burra assim.

— Devia parar de fumar e voltar a mergulhar. Você era mais feliz.

— O mergulho! É claro!

— Sabia que você chegava lá.

— Embolia gasosa, é claro. Como sou idiota.

— Gostou?

— Gênio.

— Mamãe é toda sua.

 

 

Publicado no Rascunho em 08/10/2020