Esse quarto de hospital poderia ser de qualquer um, mas é meu. Lembro de tantos outros, não meus, e de todos aqueles que não podem garantir esse luxo.
Tento dormir mas o entra-e-sai da enfermagem dificulta.
Devem ser umas 3 da manhã e a Rainha Louca (apelido que dei para a enfermeira-chefe) me pergunta se não quero ligar a televisão. A vontade de responder “eu sei operar um controle remoto” foi grande, mas me limitei a responder “não, obrigada”. Ela não se satisfaz e tenta puxar assunto. A minha cara de hospitalizada com headfones enfiados nos ouvidos não foi suficiente para dissuadi-la. Ela continua e pergunta algo sobre o que suponho ser uma novela. Respondo “não vejo tv, não gosto de tv, não vejo novela”. Achei que o “me deixa em paz” estaria subentendido. Não estava.
Durmo.
Acordo.
Consigo levantar. Vou até o controle do ar condicionado e desligo. Abro a janela.
Entra um enfermeiro. Liga o ar condicionado e fecha a janela. Explico. Ele desliga o ar condicionado e abre a janela, contrariado.
Durmo.
Acordo.
Há um feixe de luz que entra no quarto, bate na parede e reflete bem no meu pé direito. É lindo. Digo, a luz é linda. Meu pé, nem tanto. Entra o enfermeiro fã de ar condicionado e fecha a cortina. Esse homem me odeia, não é possível. Desisto e não falo nada.
Lembro de pessoas importantes que visitei em hospitais. Algumas muito mais graves e outras bem menos do que eu, aqui, agora. Vem a saudade. Mentira. A saudade sempre existe. Vem a lembrança da saudade.
Durmo.
Acordo.
O esforço para levantar é gigantesco. Ainda assim, quero escovar dentes, tomar banho, botar uma roupa de verdade. Percebo que preciso de ajuda. Chamo a Rainha Louca. Ela muda a abordagem e pergunta de filmes. Dessa vez engreno na conversa. Não fosse a situação patética de precisar de ajuda para tomar banho, seria até agradável. Descubro, então, que ela tem dezesseis gatos. Dezesseis. Nunca um apelido dado intuitivamente foi tão apropriado. Os nomes, entretanto, são maravilhosos. Os que lembro: Hipócrates, Hígia, Asclépio, Quíron, Apolo, Níque, Leda, Helena e, Discórdia. Quase gosto da Rainha Louca.
Consigo, enfim, ouvir música olhando para o teto me sentindo um pouco melhor, em grande parte pelo banho e pelos dentes escovados, em menor parte pela recuperação em si.
Durmo.
Acordo.
Um paciente que fala alto e o dia inteiro no celular resolve estacionar na minha porta. Levanto e, arrastando o soro, abro a porta e grito o mais grosseiramente que consigo “isso aqui não é feira, meu senhor, fala baixo”. O homem agora me odeia e a enfermagem me ama. Saí no lucro.
Durmo.
Acordo.
Médico passa a visita. Diz “vinte dias de repouso”. Eu acho engraçado, ele não entende. Não era piada, pelo visto.
Durmo.
Acordo.
Mudou o turno, o que significa responder novamente que sim, estou sozinha sem acompanhante e que sim, eu prefiro a tv desligada e que sim, quero a janela aberta. Significa também administrar o espanto alheio com essas respostas.
Durmo.
Acordo.
Não sei mais que dia é hoje. É reconfortante a ideia de que não importa.
Fico pensando nas pessoas que não conseguiram sair de um quarto assim. E nas que nunca conseguiram entrar. A tristeza vem. É tudo tão arbitrário.
Durmo.
Acordo.
O feixe de luz volta a me visitar.
Nina Simone toca no headfone.
A vida volta a fazer algum sentido.