Mario de Andrade, Ariano Suassuna, Nélida Piñon, Oscar Wilde, Manuel Bandeira e muitos outros – antes e melhor – escreveram seus testamentos literários.
Enquanto me for dado escolha, não pretendo morrer tão cedo, mas a tentação de escrever um é grande. É um desejo autocentrado, egoico, narcisista e fútil. Ainda assim, um desejo. Sabe, tem muita coisa que eu faço só para ter feito, só pelos bragging rights. Essa é uma delas.
Vasculho minhas memórias e descubro que tudo o que eu acho digno de nota não tem espaço em uma empreitada dessas.
Quero deixar registrado que eu segurei a mão do meu filho enquanto ele aprendia a andar. Que abracei todos aqueles que mereceram. Que amei com mais intensidade do que odiei. Que eu gosto mais de sorvete de pistache do que de chocolate. Que minhas cores favoritas são as de tons quentes. Que chorei. Que sorri. Que estudei. Que trabalhei. Que me esforcei. Que produzi, que escrevi, que pintei, que desenhei, que publiquei, que lecionei, que conquistei. E que, ainda assim, acho a vida pequena, curta, tola. E que, ainda assim, sou pequena.
Quebrei uma perna e um dedo na mão esquerda. Não há uma única região do meu corpo que não tenha cicatrizes. Falo aqui das visíveis na pele, não das emocionais. Dessas últimas, nem contabilizo mais.
Há uma vantagem muito grande em não ter sucesso, fama, dinheiro, essas coisas. É que a gente consegue se ver com um certo humor. Humor e distanciamento. O fato de que o capitalismo ocidental está profundamente decepcionado comigo me permite a reciprocidade e, com ela, o descolamento social necessário para, talvez, fazer alguma coisa direito nessa vida.
Posso aproveitar o sol que entra pela janela. O sol, que sei, um dia acabará para mim. E, quando esse dia acontecer, que lembrem que segurei a mão do meu filho enquanto ele aprendia a andar. Nada mais importa.
Os amigos que lembrem, por favor, dos momentos em que a minha absoluta falta de noção triunfou. Foram, envergonho-me, muitos. O que seria da vida sem o desprendimento necessário para ser idiota?
Não deixem também de perguntar àqueles que me são caros se algum dia lhes faltei.
Esse é meu maior orgulho. O de saber que aqueles que de fato importam podem sempre contar comigo. Os livros publicados, as exposições realizadas, os podcasts gravados, as ilustrações feitas me aquecem o coração, mas cairão no éter quando o coração desistir. Ficarão os beijos, os abraços, os afetos.
Que lembrem de mim como aquela que manteve e fez amigos por toda a vida. Que lembrem de mim como aquela que soube amar. Que lembrem de mim como alguém com quem se podia contar (inclusive para fazer besteira, e como as fiz, em profusão).
Matei todas as plantas que tentei cultivar. Tudo o que eu costuro fica torto. Não sei trocar um sifão. Faço sempre o mesmo tipo de comida. Dirijo feito uma velhinha de 90 anos e irrito todo mundo à minha volta.
Não tenho paciência para ritos sociais, religiosos, políticos. Tolerância zero para qualquer coisa ou ação que entre na categoria “bons costumes”.
E nada, nada disso importa.
Certo dia, filho pequeno querendo ir para o parque. Pegou seu caminhão favorito e uma bola, calçou os tênis e, pronto para sair, me chamou. Apontei para a janela. Chovia torrencialmente. “Mãe, faz parar!”
Que conste de meu epitáfio: “para seu filho, ela podia parar a chuva”.
Crônica publicada no Rascunho em 05/11/2020