Minha cachorra tem 19 anos de idade. É comum, portanto, que as pessoas não me perguntem como ela está, mas apenas se ela ainda está viva. Tive também uma gata que viveu 23 anos e uma peixinha dourada que morreu assassinada aos 14, por essa mesma gata highlander. Idades medidas em anos humanos porque fazer conta é muito difícil.

De todos os bichos que já tive na vida, são sempre as fêmeas que duram mais. Naturalmente, observo esses dados com algum otimismo. Quero crer que, ao cuidar delas, aprendi a usar essa teimosa persistência como modus operandi.

Não tenho vontade de pertencer a outro gênero, mas que ser mulher signifique outra coisa. Cis ou trans, não faz diferença. Quero que a situação feminina como um todo mude e que a sociedade nos trate melhor.

Já quis ter outra profissão, outra idade, outra etnia, outra nacionalidade, outra companhia. Desejei pertencer a outra espécie, a outro planeta, a outra classe social, a outros grupos.

A única coisa que eu nunca quis mudar foi a minha história. Não que minha biografia seja imaculada, muito pelo contrário, mas é o que me define. De vez em quando, entretanto, eu tomo uns sustos. Filho na faculdade é uma prova inconteste da velhice da mãe, por exemplo.

O choque de realidade mais recente foram os cabelos brancos. Numa madrugada dessas, meu cérebro hospedou um seminário a respeito de cabelos pintados. O palestrante que defendeu deixar o cabelo ao natural venceu o debate por ampla margem. Apesar de ser o favorito, essa vitória não lhe garante o resultado de seminários futuros, naturalmente.

Um dos principais argumentos foi o inegável charme dos cabelos grisalhos da Fiona Heloísa Emengarda Beatriz, a minha cachorra. Sim, ela tem quatro prenomes. É uma princesa e precisava de um nome à altura. Fiona Heloísa, assim como todo o restante da família, não tem pedigree. Somos, aqui, todos vira-latas.

Ela é um case de sucesso. Foi achada na rua, abandonada. Passou de sem-teto a madame. Hoje ela tem direito até mesmo a um lugar cativo no sofá e uma cobertinha só sua. Nada mal para quem dormia ao relento.

Infelizmente, é uma madame burra feito uma porta. Foi pensando nela que os humoristas preguiçosos criaram as piadas preconceituosas de louras. Ou seja, sua ascensão social foi pura sorte, nenhum mérito.

Quando meu filho – o bebê que nasceu ontem e está na faculdade – era novinho, mostramos a ele um vídeo de um cachorro de serviço, que auxiliava uma senhora cega a fazer absolutamente tudo, dentro de casa e na rua. O meu comentário foi algo como olha que cachorro inteligente. A resposta do meu filho foi certeira: “Mais inteligente é a Fiona. Tem casa, comida, carinho, cuidados e segurança sem fazer nada disso”.

Filhos têm essa capacidade de nos retirar do nosso próprio eixo e desestabilizar tudo ao nosso redor.

Estou até hoje revendo os meus conceitos sobre trabalho, vida e valor.

Mais-valia é um petisco sabor churrasco.

 

 

Crônica publicada no Rascunho em 04/02/2021