O grau dos meus óculos está mudando. Enxergo melhor o longe mas, infelizmente, a cada dia o que está perto se torna mais inalcançável. Sinais da velhice galopante, me disseram. É a pior troca que existe. O mundo entra em foco e as letras somem. Péssimo negócio. Prefiro ler com facilidade e não enxergar todo o resto. O mundo anda feio, sem graça, doente, mentiroso. A literatura nunca me falhou.

Tem um TikTok em que alguém pergunta a uma moça como foi 2020 para ela. Ela responde que foi perfeito, que não precisou interagir com ninguém, que dentro da sua pequena bolha foi ótimo, que pessoas são horríveis. Não chego a tanto mas sou capaz de entender.

Confesso que, assim como você, eu também tinha esperança de que já tivéssemos superado isso tudo. Cheguei até a planejar uma festa para março de 2021. Esse, claro, sequer é um problema real. A economia, a crise, as mortes, os doentes, a falta de oxigênio etc., mas isso tudo você lê nos jornais. Crônicas não têm essa função, não tenho essa responsabilidade.

Comento sobre o meu pânico de ir ao oftalmologista por causa da Covid e um amigo responde, no bate-pronto, que o maior perigo de gozarem no seu olho é a contaminação. Levo alguns segundos fingindo uma cara de pôquer para tentar me recompor da informação não solicitada arremessada na minha cara. Não por qualquer tipo de moralismo, veja bem. Sendo adultos em consentimento mútuo, que façam o que bem entenderem. Levo um tempo para digerir o fato por causa do elemento surpresa, completamente fora do contexto da conversa. Em uma reação de guerra, respondo algo sobre o tecido ocular, em um misto de informações lidas em algum lugar com as que inventei como mecanismo de defesa. Falo com tom sério, o que me garante uma certa alforria e a possibilidade de mudar o tema da conversa.

Não é fácil me surpreender. Chego, em menos de um mês, aos 50 bem vividos. Talvez o maior feito da minha biografia tenha sido, justamente, me cercar de pessoas que ainda conseguem jogar a minha zona de conforto no lixo.

Preciso, entretanto, superar ambos. A imagem grudada na minha mente e o medo de ir ao oftalmologista. A primeira, por uma questão de sanidade. A segunda, porque já não consigo mais ler nem mensagem no celular, daquelas que ampliam com os dedos. A perfeita Sra. Magoo. Não é como se eu lesse pouco, então faz falta.

Estamos chegando a um ano de quarentena. A última vez que saí com amigos foi, justamente, no meu último aniversário. Naquele final de semana entramos em isolamento, medo, quarentena. Demoramos um pouco a compreender como esse vírus de fato se propaga. Começamos a lavar compras e estocar álcool em gel. Fomos obrigados a ouvir gripezinha e outras atrocidades. Enquanto isso, pessoas morrendo. Máscaras e luvas se tornaram artigos escassos. Por sorte, eu tinha trazido como souvenir umas máscaras de Tóquio e consegui fazer mercado. Por falar em hábitos nipônicos, finalmente adotamos os sapatos na entrada. Não fiz estoque de papel higiênico mas posso ser responsabilizada quase que integralmente pela conhecidíssima Grande Escassez de Post-its de 2020.

O mundo se dividiu entre os que entendem o básico de ciência e os antivax, os contra as máscaras e outros ignorantes (ignorante: aquele que ignora, que não sabe). Nos afogam em fake news e em mentidos e desmentidos esquizofrênicos. Preferia ter esse mundo fora de foco e a literatura nítida.

Tudo bem, eles passarão, eu passarinho.

Comemorarei os 51 com um tema de cachaça. Caninha 51 e, espero, óculos novos.

 

Crônica publicada no Rascunho em 25/02/2021.