Começo um desenho novo, afogada em culpa. Adorno não me sai da cabeça. Estou cometendo uma barbárie? Longe de comparar o Brasil de hoje com Auschwitz, não é nada disso, não me entendam mal. As mortes evitáveis, entretanto, são um soco no estômago. E eu aqui, procurando uma beleza no mundo. O belo ainda é possível?

Não procuro a beleza kantiana, que transcende. Nem a platônica, ideal. Sou mais mundana. Procuro o saco plástico voando ao vento, assim como o personagem Ricky no filme Beleza Americana. Também eu, um pouco louca, um pouco simplória, consigo achar lindo o lixo voador. Passo a vida prestando atenção nessas coisas, o que explica, talvez, a minha distração patológica.

Já parei carro no meio da estrada para pegar uma florzinha bonita. Já escolhi caminhos a seguir não pela direção ou tempo de chegada, mas pela quantidade de árvores na rua. Já perdi voo, mesmo tendo chegado com duas horas de antecedência, porque me distraí com a janela ao lado do portão de embarque. Já esqueci do meu próprio aniversário e me perdi no bairro em que fui criada.

Por outro lado, décadas depois, ainda sei exatamente qual é o tom de vermelho do grafite no muro atrás do jornaleiro onde eu comprava figurinhas quando criança. Posso te descrever – ou desenhar –, sem olhar, a curva que o canteiro da calçada da minha rua faz. É uma curva francesa, linda. Provavelmente só a mãe do arquiteto e eu damos valor a essa perfeição.

Da janela do hospital que frequentei em 2017, vê-se 48 casinhas. Dessas, 21 são azuis, 8 amarelas, 3 vermelhas e o resto de um creme-sem-graça que, para vender melhor, dão um nome em inglês: off-white. Dessa mesma janela também era possível ver o entra-e-sai de caminhões de entrega. Às segundas, sempre por volta das 11h, chegava um verde enorme com produtos de hortifruti.

Percebo essas coisas mas, com frequência, não lembro nome de parente.

Há mais de ano trancada em casa, não vejo mais os sacos plásticos ao vento. O mundo não me mostra mais suas entranhas, suas periferias, suas esquisitices que tanto gosto. Não porque não existam mais esquisitices, mas porque não existe mais mundo.

Quando eu tinha a idade do meu filho, meu sonho era ir às esquinas do planeta. Queria conhecer a Sibéria, as Filipinas, o Benim, a Antártica… Meu filho sonha em ir até a esquina em segurança. A realidade está cruel e insuportável.

E eu aqui, escrevendo e desenhando. O que há de errado comigo? Será que me tornei uma velha insensível?

Por que insisto em procurar esse belo? O mundo é feio e bruto. Há beleza na brutalidade? Será que é essa, uma questão (anti)estética, que atrai o apoiador do governo brasileiro atual? Lógica e raciocínio certamente que não. Deve ser a feiura, a brutalidade. É inegável que existe uma estética na ignorância.

Lembro, então, dos gigantes que pintaram durante guerras. Lembro especialmente de Francis Bacon, sangue e vísceras sobre tela. A violência pode ser atraente. É liberador perceber no outro a raiva que oprimimos dentro de nós.

Das pulsões descritas por Freud, busco Eros. Estou plenamente consciente de que Eros não existe sem Thanatos, mas a escolha de qual eu permitirei que paute a minha vida é minha.

Por falar em Thanatos, o Brasil se aproxima de meio milhão de mortos por uma doença para a qual já existem vacinas. E eu… Desenho? Como? Com que estômago?

Tento me distrair na internet e encontro dancinhas e abaixo-assinados. São polos diametralmente opostos, mas ambos iludidos em sua importância. A fama possível de uma dancinha é, na melhor das hipóteses, fugaz. O alcance do abaixo-assinado na internet é, no melhor cenário, irrelevante. Ainda assim, insistimos. Eles com dancinhas e protestos, eu com desenhos. Não há diferença.

Estamos, todos, enlouquecendo a passos largos.

Mostro o desenho para o meu filho e ele sorri. Encontro, afinal, toda a beleza que busco no mundo.

 

Crônica publicada
Revista Pessoa em 14/05/2021
Edições Mombak
Lisboa
ISSN 21791929