Revisito passagens da minha vida e, como em todo processo reflexivo, descubro o quanto sou otária. Sou, no presente, porque continuo.
É tudo muito doloroso. É difícil ver com clareza todas as vezes em que fui deixada de lado, sacaneada, menosprezada. O quão pouco recebi em incontáveis situações. Pessoas que eu esperava que me protegessem sequer me enxergavam.
Esse relato é comum. No fundo todo mundo tem uma sequência de abandonos na biografia. A quem acha que não, recomendo terapia.
Não é uma questão de se fomos abandonados mas de como reagimos e o que fazemos com isso.
É aquela velha máxima da psicologia: somos todos psicóticos ou psicopatas. Os melhores de nós, psicóticos sequelados pela vida. Ou seja, nós somos os felizardos, os privilegiados. Somos os sobreviventes.
E é necessário poesia para sobreviver. E humor.
O que me lembra os meus três patos de borracha. Esquerdopato, Sociopato e Psicopato. Comprei especificamente para fazer essa piada. Estão em uma estante e provavelmente eu sou a única a rir internamente toda vez que passo por eles.
No Brasil de hoje, com o governo corrupto, assassino e repugnante que temos, manter o humor ou a poesia pode ser uma tarefa árdua mas é um esforço necessário.
Vi um jovem rapaz sentado na rua com um sketchbook. Quase tropeço. Foi um tapa. Foi a vida me lembrando de quem eu sou. Em algum momento, entre um boleto e outro, entre um abandono e outro, acabei esquecendo.
Eu sou esse menino distraído que ainda vê beleza à sua volta. Não importa o genocida, não importa o caos, não importa.
A única coisa realmente relevante é vivermos o que temos dentro de nós, vivermos da forma como enxergamos o mundo e como nos afetamos por ele.
Tenho a absoluta certeza de nossa temporalidade. Me irrito com o desperdício. Me falta paciência, me falta tempo.
O tempo é pouco, sempre será.
Somos mortais.
A consciência da morte não me desespera, apenas me apressa.
Não temos tempo. Nunca o teremos.
Não bastamos.
Felizmente temos ainda a arte, a literatura e o humor para nos salvar.
E isso basta.
Passo pelos patos e sorrio sozinha.
Crônica publicada no Rascunho, em 14/10/2021