Recentemente passei alguns dias indo a médicos. Nada grave. Doloroso, mas não grave. Minha mão esquerda decidiu que já estava bom pra ela, que esse negócio de pandemia afetou mesmo todo mundo, em especial a esquerda no país e que era isso, chega.
Tenho horror a qualquer um que legalmente seja habilitado a tirar a minha consciência. Médicos, de todos que se enquadram nessa categoria, são os mais arrogantes e, portanto, os que eu mais detesto. Ainda assim, um mal necessário.
Estive no mesmo pronto-socorro oito vezes em quinze dias. Toda vez a mesma coisa: triagem e cadastro. No cadastro, a atendente confere endereço, telefone e digitaliza novamente os documentos. Não é culpa dela, mas esses sistemas precisam ser mais inteligentes e compreender que normalmente as pessoas não vão ao PS, se mudam e, em seguida, voltam para o PS. Com certeza não aquelas com apenas uma mão funcionando. Você já tentou se mudar de casa usando apenas uma mão? De um dia para o outro? Doidona de remédio?
Tive a companhia do meu Kindle em todas essas salas de espera e, polianamente, botei a leitura em dia. Como se não bastasse, o médico me botou em licença por alguns dias e, com isso, caiu no meu colo um tempo que normalmente não tenho.
Li, finalmente, A barata, do Ian McEwan; Becos da memória, da Conceição Evaristo; Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, do Marçal Aquino; O inventário das coisas ausentes, da Carola Saavedra; Vasto mundo, da Valéria Rezende.
Estava no Kindle também A cachorra, da Pilar Quintana, que na verdade eu já tinha lido mas que reli, com muito gosto, durante os oito anos em que fiquei esperando na fila do ultrassom. Conheci Pilar Quintana a partir da recomendação do Hernandes, do blog Café Comité. Sim, eu sou velha e leio blogs. Apaixonei.
No papel, li os infantos Ilha e A vida seria mais fácil se eu fosse um monstro, ambos do excelente Marcelo Jucá. Recomendo.
Dá perfeitamente para entender o meme da professora que comete um crime menor com o único objetivo de ser presa e conseguir botar a leitura em dia e dormir.
Não consegui dormir, mas zerei o Kindle.
Em um dos muitos dias de PS, um enfermeiro me perguntou o que eu estava lendo. “Saavedra, O inventário…”, grunhi entre os dentes, irritada pela interrupção. Eis que o rapaz responde “dela, só li Paisagem com dromedário. É bom esse aí?”. Conseguiu minha atenção e um sorriso. Quer dizer, o sorriso ele não viu, estava escondido atrás da máscara, mas conseguiu.
Bons livros conseguem criar elos até entre inimigos mortais (eu e profissionais da saúde).
Só a literatura salva.
Ok, talvez a literatura e um anti-inflamatório.
Crônica “PS com dromedário”, publicada no Rascunho em 25/11/2021.