Vênus e Marte decidem jogar xadrez e nós temos o registro dessa partida. É sério. Na verdade, os jogadores eram Don Francí de Castellví (c. 1435-1506) & Narcís Vinyoles (c. 1442-1517). O jogo aconteceu em 1475, na cidade de Valência, no que hoje entendemos como Espanha (que só vai virar uma única nação com a formação da Monarquia Nacional Espanhola, em 1493).
E vocês aí achando que só o nosso presidente tinha sobrevivido desde a Idade Média.
Esse é o jogo mais antigo com as regras modernas de que temos registro. O xadrez em si é mais antigo que isso, mas não temos uma partida escrita. Eram outras regras e, principalmente, não envolvia o amor.
Nós temos o registro dessa partida em um poema catalão, Scachs d’amor, escrito pelos jogadores e por Mossèn Fenollar (1438-1516), usando, respectivamente, os pseudônimos Marte, Vênus e Mercúrio.
Os três eram figuras públicas conhecidas. Castellví foi conselheiro do rei Fernando II de Aragão, Vinyoles era o marido da sobrinha do banqueiro que financiou a viagem de Cristóvão Colombo e Fenollar era um abade da Catedral de Valência.
Fenollar funcionou meio que como um comentador, quase um Agadmator medieval. Mercúrio era um cara influente. Não por acaso Lorenzo, o Magnífico, será retratado como o deus grego no quadro Alegoria da Primavera (1482), do Botticelli. Mercúrio era o cara.
As equivalências das peças acontecem no desenvolver do poema que, por sua vez, é o registro lírico de cada um dos movimentos.
Castellví-Marte, brancas, considera como razão o rei; a vontade é a rainha; as torres são seus desejos; os cavalos, os elogios, e os bispos, pensamentos.
Vinyoles-Vênus, pretas, por sua vez entende que a honra é o rei; a beleza é a rainha; as torres são suas reservas; os cavalos são o desdém e os bispos, doces olhares. Ele devia estar se referindo ao padre Júlio Lancellotti, certeza.
São 64 casas, 64 estrofes. Cada estrofe é uma espécie de matriz, com nove linhas cada. E assim, em uma métrica matemática, desenrola-se a partida.
A disputa, entre os amantes Castellví-Marte & Vinyoles-Vênus, se desenrola por 21 movimentos, com a vitória do primeiro.
O que mais gosto é como o poema acaba: “Na lua está o ponto deste eclipse/ E entender é entender o Apocalipse”.
“Entender o Apocalipse” será, doravante, a minha forma de dizer “perdeu, playboy”.
Crônica publicada no Rascunho em 09/12/2021