Estou aqui tentando me recuperar do mansplaining do dia. Sim, é todo dia. Esse foi sobre tecnologia, um assunto que os homens acreditam lhes pertencer. Eu, que fui SysOp de BBS em 1997 e já trabalhava com tecnologia muito antes disso, aparentemente não posso conhecer o tema pelo simples fato de não ter um pinto. Sim, em pleno 2022.
Trabalhei e estudei a vida inteira 3 grandes pilares de interesse: literatura, arte e tecnologia. Sempre que possível, misturando essas áreas. Meu mestrado e meu doutorado, ambos em História da Arte, usam grafos relacionais e Big Data. Em breve, o meu pós-doc, em Letras, usará dados geolocalizados e relacionais. Na adolescência eu ganhava uma graninha extra como “a menina do Carta Certa”.
Sou velha, muito velha, e sempre trabalhei e estudei muito. Para hoje escutar em tom condescendente do coleguinha para que serve um software que uso desde a primeira versão. O infeliz é meu colega de trabalho, então não posso bater nele com um livro da Djamila Ribeiro até que entre algo por osmose. Que dá vontade, dá.
Estou aqui tentando me recuperar do mundo, da macholândia, do babaca de plantão.
Às vezes tudo o que eu queria ser era uma sem-cérebro dessas que tem como única preocupação na vida se o traseiro está ou não olhando para os astros. Ia criar um canal no YouTube sobre ervas levanta-bunda que podem ser cultivadas em casa e ficar rica. Pensando bem, não, não queria, não. Conheci recentemente uma pessoa que tem muito a falar e nada a pensar ou fazer. O horror, o horror.
Meu pai usa uma expressão sempre que vai se referir a algo pelo qual passou com alguma sequela: “and I’ve got the scars to prove it”. Em inglês mesmo. Sei que existe uma música dos The Road Hammers, de 2008, com esse título, mas tenho a lembrança dele usando a expressão antes disso. Não importa.
Sempre me lembro das cicatrizes que tenho para provar o machismo, a misoginia, o pensamento raso, o preconceito. O cansaço às vezes me vence.
Não quero mais ser responsável pela fragilidade emocional de homem adulto. Vai fazer terapia, dar uma caminhada, adotar um cachorro, sei lá, not my circus, not my monkey. Verdade seja dita, os gringos tem expressões ótimas. Essa, entretanto, é um velho ditado polonês.
A polêmica do momento foi a declaração do Chico Buarque de que não vai mais cantar Com açúcar e com afeto, por dar razão às feministas sobre a letra da música. A música foi composta a pedido de e para Nara Leão, em 1967.
Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Para homem parar em casa é algo que ainda se escuta por aí. A letra, infelizmente, ainda é atual.
Chico não canta a música tem algumas décadas. Não foi, portanto, uma decisão por impulso. O artista tem todo direito de retirar de seu repertório/portfólio peças que não o representem mais. Todo artista faz isso. A polêmica só foi criada pelo porte do autor e por ser uma obra queridinha do público.
Adoro a música, é linda. E é machista. Continuarei ouvindo (e cantarolando, para desespero daqueles à minha volta), mas minha admiração pelo Chico só cresce.
Estamos cansadas e a ajuda é bem-vinda.
Crônica publicada no Rascunho em 03/02/2022.