Martin Scorsese tem razão. Se não sobre tudo, ao menos sobre seus próprios filmes. Quando lançou O irlandês, o cineasta pediu que não vissem seus filmes na tela de um celular. Virou meme, o coitado. Revoltados de plantão lotaram a internet com fotos do filme passando no celular e montagens com cenas rodando em tudo o que se pode imaginar. Mas ele tem razão. Certos filmes — como os de Martin Scorsese — precisam de um espaço maior do que nossos óculos para acontecer.
Digo mais, precisam da imagem projetada. A imagem que emite a luz diretamente nos nossos olhos (monitor, televisão, celular, etc.) perde nuances e, principalmente, perde sombras.
Francis Ford Coppola, em Drácula de Bram Stoker, renuncia à computação gráfica e cria o filme inteiro com técnicas tradicionais, como trucagem, maquiagem, etc. É contando com o espaço da tela grande e com a luz projetada que Coppola usa a sombra como elemento narrativo.
Em pleno Carnaval, revi O poderoso chefão. Dessa vez, no cinema. Apesar de já ter visto o filme diversas vezes, foi a minha primeira na telona. O filme foi remasterizado em 4K e está em cartaz.
Não vou me preocupar muito com spoilers de um filme lançado em 1972, certo?
Sim, essa obra-prima tem 50 anos. Envelheceu bem e com dignidade.
Logo no começo, Coppola demonstra didaticamente como funciona a narrativa fotográfica. Uma das primeiras cenas tem quase metade da tela ofuscada. É o close das costas de um personagem com terno preto. Ele muda completamente a composição do quadro sem alterar o enquadramento. Esse homem é um gênio.
Coppola é aluno (em espírito) de Caravaggio. Os dois compreendem que o significado emerge da sombra e que é a luz que conta a história. Ou melhor, os três — Coppola, Scorsese e Caravaggio — compreendem que a não-imagem, a sombra, também é parte constituinte da narrativa.
Coppola, sobre O poderoso chefão, declarou: “The lens was very selective in what it showed, and each sequence was like building something out of bricks”. Mas, até aí, toda narrativa é uma sequência de seleções e escolhas que acabam por construir algo. Um dos muitos aspectos que fazem do filme essa obra de arte reverenciada por meio século é o chiaroscuro de Caravaggio, atualizado e transposto para a tela grande.
Coppola praticamente não usa a luz de preenchimento. Ou seja, as sombras são duras e é comum que os rostos estejam com uma metade iluminada e a outra no escuro. É uma metáfora sobre a dualidade em todos nós. Ainda pensando nessa dicotomia, cenas inteiras são claras quando a inocência se apresenta (exílio de Michael Corleone e seu relacionamento com Apollonia, por exemplo).
Sim, eu sei que a sombra já tinha sido usada no cinema anteriormente. Expressionismo alemão e por aí vai. Mas não como aqui.
No início do filme, Don Corleone aparece, conforme a câmera se afasta, como uma moldura, de costas, na sombra, quase que apenas em silhueta. Tanto a movimentação de câmera quanto a falta de iluminação estabelecem as tensões entre os personagens e ditam a relação entre esses personagens e os espectadores. O diretor de fotografia de O poderoso chefão, Gordon Willis, recebeu o apelido de “príncipe das trevas” exatamente por essa característica sombria.
Foi, para mim, muito impactante o efeito da tela grande porque a invasão das sombras pode, finalmente, acontecer.
As trevas que tanto aprecio no cinema, infelizmente, nos atropelam na vida. É Covid, Ucrânia, Petrópolis, Bolsonaro, desmatamento, invasões em terras indígenas, grupos neonazistas brasileiros em crescimento. É tanta desgraça junta que só resta mesmo abrir um bom livro ou ir ao cinema. Podemos nos permitir e suspender não apenas a descrença mas também a realidade. É uma oferta que não podemos recusar. Na dúvida, deixe a arma e pegue os cannolis. Ou, no caso, a pipoca.
Crônica publicada em 03/03/2022 no Rascunho