O LinkedIn, lugar mais tóxico de toda internet, manda notificação para que eu parabenize uma pessoa por 32 anos trabalhando no mesmo lugar. Conheço gente que gosta verdadeiramente dessa estabilidade e tudo bem. Não é um julgamento de valor, apenas um comentário pessoal. Em mim, o conceito causa calafrios. Não consigo me imaginar nem morando no mesmo lugar tanto tempo, que dirá trabalhando.
Aprendi com minha mãe a arte do travel light. Levo poucas coisas em viagem, abandono um monte, trago livros. Não consigo lembrar de alguma vez em que tenha levado mais do que uma mala e a mochila de mão com o notebook.
Tenho pouca roupa. Tenho poucos sapatos. É de propósito. Resquícios de morar em um país que flerta com a ditadura. A qualquer momento posso precisar fazer uma mala, pegar o passaporte e sair correndo. Com exceção dos meus livros e minhas tintas, me mudo com a mesma facilidade com que viajo.
A raiz dos três comportamentos é a mesma. La donna è mobile.
E agora conto para vocês o segredo de como consigo fazer tanta coisa diferente. É o mesmo pensamento. Ao invés de me angustiar, procrastino um trabalho com outro. Estou cansada de escrever? Vou desenhar. A preparação da aula já está me irritando? Vou escrever. E por aí vai.
Quando tudo mais falha, vou ao cinema.
Tenho falhado bastante.
Tenho ido bastante ao cinema. Estou, assim como todo brasileiro, exausta. Ninguém aguenta mais.
Mesmo quando não no cinema, prefiro filmes a séries.
Revi O sétimo selo, do Bergman, com filho.
Ucrânia destruída; Covid comendo solta e a obrigatoriedade da máscara acabando; o inferno que é o Dia das Mulheres repetindo os mesmos clichês de sempre; e, para fechar a semana com chave de ouro, descobrimos que 763 cidades brasileiras têm produtos químicos e radioativos na água de torneira.
Estamos todos jogando xadrez com a morte.
Como acontece com frequência, é João Cabral de Melo Neto quem me salva:
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
Somos todos Severinos, somos todos ucranianos.
Nos resta a arte, a literatura e a alteridade.
Vamos vencer (nem que seja por pura teimosia).
Crônica publicada no Rascunho em 10/03/2022