A cachorra nova, que não substitui a morta, marca o início de um capítulo muito maior do que o resgate do animal. Como tudo na vida e no mundo, a cachorra é um símbolo.
Nina Simone Vigna certamente vai se encaixar bem nessa família de vira-latas bípedes e quadrúpedes. Nós sabemos o que é não ter pedigree. Sabemos o que é virar os mundos da vida, revirar as esquinas da geografia. A gente entende. Sabemos no corpo, como diria o velho Baruch.
Cabeça no mundo da lua, como sempre, arranho o carro saindo da garagem, do mesmo jeito que já fiz antes. Levo para o conserto. Para minha vergonha, eles lembravam: “Ah, que bom, no mesmo lugar que da outra vez, assim não diminui muito o valor de revenda”. Um exemplo bem didático de um pensamento que jamais me ocorreria. Aos 51 anos, esse é meu terceiro carro. Valor de revenda não entra nessa conta nem como nota de rodapé.
Foi esse carro, ainda arranhado, que Nina Simone invadiu quando decidiu que eu era uma humana relativamente digna de sua companhia. Difícil dizer quem resgatou quem.
Três carros e três cachorros. Isso deve querer dizer alguma coisa. Para os romanos, certamente. Suspeito que apesar do sobrenome italiano eu venha de uma linhagem bárbara, entretanto. Para os romanos, bárbaros eram os outros. Dá para entender muito do Brasil olhando para Roma Antiga.
Brasileiríssimas, a cachorra e eu, nos habituamos a tomar café da manhã no bar da esquina. Ela pede, mas não ganha o pedaço de pão com manteiga que como mas não devo.
Caminhamos a esmo. Eu já fazia isso antes, mas agora, com a cachorra anexada ao meu braço, as pessoas parecem achar menos estranho.
Lembro do maravilhoso livro da Pilar Quintana e aperto o passo.
São 6h da manhã e o resto de noção que ainda habita em mim me impede de mandar mensagens para o namorado, de ligar para o pai, de chamar o filho para o bar. Demoro, mas aprendo.
Só dou aula às 7h20 e estou pronta. Considerando uns 20 minutos para chegar lá, isso me dá quase uma hora para caminhar mais com a cachorra. Uso a técnica do avião: vou até onde a metade do combustível permitir. Chego até a Casa das Rosas, na Paulista. Falta pouco para abrir, mas não tenho tanta gasolina e preciso voltar.
Muito a contragosto, meu e dela, Nina Simone fica em casa e eu vou trabalhar.
O celular se conecta automaticamente no bluetooth e Ella Fitzgerald começa a tocar.
There is nothing more to say
Except it’s a lovely day for saying
It’s a lovely day
Não é Nina, mas acho engraçado. It’s a lovely day.
Crônica publicada no Rascunho em 19/05/2022.