Com o passar dos anos, chegam as rugas, os cabelos brancos e os profissionais indispensáveis. Vamos ficando velhinhos e queremos cortar cabelo com fulano, consertar o carro com sicrano, essas coisas. Não me deixem aqui sozinha, vocês também têm isso que eu sei.
Eu tenho um tatuador de quem não abro mão. O estúdio fica lá em deus-me-livre, praticamente em outra cidade de tão longe. Vou mesmo assim. E, como já nos ensinou Newton, vou e volto. Um frio dos infernos e eu medrei. Voltei de uber.
Saí lá de Marte com o dia ainda claro, chego em casa já anoitecida. No caminho, pela janela do carro, a cidade esmaece a olhos vistos e, com ela, a dor da tatuagem nova. Foi, para mim, um pouco melancólico. Deu uma saudade imensa dos filho-tudo, mozão, pai, cachorros, pessoas.
Não consigo falar com namorado, com filho, com ninguém. Lembro do tempo — sim, sou velha assim — em que a gente, para falar com alguém, precisava esperar chegar em casa e ligar para a pessoa a partir de um aparelho preso à parede. Gosto de tecnologia mas não gosto da sensação de estar dependente dela. Quase que como um ato de rebeldia, decido não insistir com nenhum dos amores e esperar.
Pela janela passa um lugar estranho. Não tenho a menor ideia de onde estou mas também não faço muita questão de descobrir.
Minha mãe costumava dizer que o mundo é um lugar muito mais ou menos. E, acrescento eu, mais ou menos a mesma coisa. Com a óbvia exceção de lugares em guerra e afins, é tudo meio que o mesmo. Criamos o mundo à nossa volta mais ou menos do mesmo jeito. Nós somos os mesmos animais construindo mais ou menos as mesmas tocas para mais ou menos nascer, crescer, reproduzir e morrer.
Pessoas que me são caras emigraram. Ou seja, moram caro: o problema é o preço da passagem; desde Santos Dumont que distância não é mais uma questão. Pedro e Hiro estão na Alemanha, Andrés na Venezuela, Renata no Canadá, Barbara em Portugal, Leonardo na França.
E eu continuo aqui sonhando com a Mega-Sena acumulada para comprar um prédio e botar todo mundo que eu amo para morar lá.
Penso, então na toxicidade social deste país e dá um aperto enorme no coração. A cidade acinzentando do outro lado da janela do carro e eu já sem saber se era o mundo que estava sumindo ou meus olhos que estavam marejando.
O motorista decide colocar música, interrompendo bruscamente o silêncio. Zeca Pagodinho me arranca à força da introspecção. Ao menos, ele canta Cartola.
Como eram falsas as bolas de cristal. Também me lembro de fatos envelhecidos mas, ao me dar conta de que são envelhecidos, sorrio. E foi assim, graças à contemporaneidade de Cartola, que abandono o estado melancólico cinza nostálgico em que me encontrava.
Chego em casa e a cachorra abana o rabo ao me ver. Vai ficar tudo bem.
Crônica publicada em 30/06/2022 no Jornal Rascunho.