Narrativa gráfica é um gênero, por natureza, livre. Não apenas pela obviedade da mistura entre imagem e texto, mas principalmente pela desconstrução de todas as linguagens envolvidas ou citadas.
Vamos desde o feijão com arroz de Vogler até silent books experimentais, por exemplo.
O Memorando de Vogler foi escrito por Christopher Vogler para roteiristas de Hollywood. Mais especificamente, sobre a estrutura narrativa da Jornada do Herói descrita pelo antropólogo Joseph Campbell. Amplamente adotado pela Disney, determina os personagens em classes e funções narrativas.
Por exemplo, a abertura determina o contexto (espaço-tempo) e as origens do protagonista. Essa é uma estrutura conhecidíssima, para o bem e para o mal.
Normalmente as aberturas são, visualmente, um plano aberto, mostrando o “onde”. Aqui começa a primeira ruptura de Kent state: quatro mortos em Ohio, de Derf Backderf. O livro começa com um plano de conjunto, mostrando guardas armados.
Uma das grandes forças de Kent state é usar a estrutura narrativa do inimigo comum, sem cair na mesmice. Narra o confronto construindo a tensão e o pensamento dos dois lados envolvidos.
O confronto, no caso, é entre jovens norte-americanos e soldados da Guarda Nacional, acontecido na segunda maior universidade do estado de Ohio, EUA. Os protestos aconteciam em todo o país, principalmente contra o alistamento obrigatório para as guerras do Vietnã e do Camboja. Foi na Kent State, entretanto, que Nixon resolveu criar um “exemplo”. No dia 4 de maio de 1970, a Guarda Nacional abriu fogo e deixou nove feridos e quatro mortos entre os estudantes.
A sequência das mortes é magistralmente elaborada. Usa uma linguagem cinematográfica, com o movimento em quadros rápidos (menores) e o momento de maior tensão (a morte em si) em um plano geral, com o quadro aberto, ocupando a página inteira.
Sei que pode parecer um pouco óbvio, mas histórias em quadrinhos são contadas quadro a quadro.
Se um único segundo de filme tem 24 quadros, nas narrativas gráficas muitas vezes um único quadro expressa uma cena inteira. É necessário um poder de síntese, tanto verbal quanto visual, imenso.
Existem parâmetros para construção do enredo que as diferem totalmente de outras mídias, como o número de páginas, a disposição de quadros, espaço para desenhos e textos, a consideração da virada da página para marcação de ritmo, entre outros.
Will Eisner diz que a narrativa gráfica é uma forma de arte que usa imagens empregadas em uma ordem específica para narração de histórias. Ou seja, imagens em uma sequência específica que contam uma história ou criam/demonstram uma ideia/conceito. Portanto, a ordem das imagens, o ritmo da sequência, o tempo de leitura e a relação texto-imagem são importantes. São importantes, mas não são impreteríveis. Não há um único jeito de criar uma narrativa gráfica. É uma linguagem completamente desconstruída.
Existem, entretanto, alguns critérios necessários para que a comunicação se estabeleça, para que a história possa ser contada de forma a ser compreendida. Um desses elementos estruturais da narrativa gráfica é a composição, organização e tamanho dos quadros, que criam uma sequência e uma sugestão de tempo e, portanto, de ritmo.
Soluções gráficas
Kent state tem algumas soluções gráficas sensacionais, como a entrada da Guarda Nacional atirando, nas páginas 218 e 219, colocada da direita para a esquerda. Ou seja, o autor se posiciona politicamente do lado dos estudantes. Nossa leitura, no Ocidente, é da esquerda para a direita. Ao colocar a entrada dos guardas na direção oposta, ele aponta para o estranhamento, para aquilo que é retrógrado (anda “para trás”). Não por acaso, é a cena que ilustra a capa. Na capa, entretanto, a ação ocorre da esquerda para a direita, nos induzindo a folhear o livro: a ação continuará nas próximas páginas, vá em frente, abra o livro!
A narrativa gráfica, como gênero, é repleta dessas sutilezas. Não pode ser lida como um livro ilustrado em que a imagem “serve” ao texto, como edições com ilustrações diferentes de um mesmo texto. Ao contrário, é construída de forma que tanto o elemento visual quanto o literário estruturam toda a narrativa.
Por falar em narrativa, é interessante como Kent state demonstra didaticamente a escalada de ódio, o crescimento da resistência, a incompreensão das autoridades, a truculência da polícia e a gratuidade da violência. Também fornece um mapa de como a Direita e a Esquerda costumam se posicionar a respeito de guerras, armas e direitos civis.
Nada mais relevante, portanto, para o Brasil de 2022.
Deleuze, no Abecedário, explica maravilhosamente o que é ser ou não de Esquerda. Ele fala, grosso modo, que ser de Direita é pensar primeiro no indivíduo, depois na família, na comunidade, no país, no mundo. E que ser de Esquerda é pensar primeiro no mundo, depois no país, na comunidade, na família e, finalmente, no indivíduo. Então, ser de Esquerda é entender que a minoria é todo mundo, diz ele.
Kent state é todo em preto e branco, outra característica relevante para a narrativa. Estou com Martin Scorsese nessa. O preto e branco te dá profundidade de pensamento visual. Na cena da morte de Jeff, por exemplo, o sangue escorrendo — preto, marcando o chão, o quadro, a página — é infinitamente mais impactante do que qualquer vermelho na paleta.
Derf Backderf gentilmente desenhou para nós como a escalada do ódio funciona. Cabe a nós aprendermos a lição.
É muito importante lembrar que Kent state é um documentário em quadrinhos. Não é ficção, infelizmente. Tudo aquilo de fato aconteceu. E não, não está no passado ou lá longe. É cotidiano, é agora. E precisa ser evitado.
VIGNA, Carolina. Contra o ódio. In: Rascunho, v. 21, n. 266, Junho 2022. (impresso e digital)