Chove. Em mais uma cristalina demonstração da ausência de um senso prático, decido ir com Nina Simone à feira livre. Se equilibrar carrinho de feira e cachorra já era difícil, experimente adicionar um guarda-chuva à equação.
Como de hábito, começo pela banca da japonesa. Japonesa aqui, no caso, é autointitulado. Ela está sempre de óculos escuros e seus traços me lembram mais uma baiana baixinha do que uma pessoa de origem oriental. Entretanto, é como ela gosta de ser chamada e, portanto, japonesa é. Com ela compro cogumelos, brócolis, couve e tofu. Nina gosta dela. Como ela sempre cumprimenta a cachorra pelo nome, acredito que é recíproco. Trocamos pouquíssimas palavras gentis e sigo.
À direita, bananas. Namorado gosta de bananas, levo um monte, estão bonitas. Nina quer continuar na banca da japonesa e atravessa pelas minhas pernas, fazendo com que guarda-chuva e coleira dancem juntos. Algo mais para um Gangnam Style do que para uma valsa. Quase caio.
Muito a contragosto, Nina concorda em seguir para os tomates.
Finalmente, o caminhão do frango. O casal de feirantes é nosso velho conhecido, desde quando ainda morávamos na antiga casa e íamos a outra feira livre. Ali paramos. É preciso botar o papo em dia. Preciso saber se a neta deles passou de ano. Eles perguntam do meu pai. E assim ficamos um bom tempo, com um legítimo e carinhoso interesse pelas vidas, nossas, que se cruzam há tantas décadas. Nina deita no chão, no asfalto, e ganha um cafuné e um petisco. Se a cachorra falasse, estou certa de que diria que aquele é um dos seus lugares favoritos no mundo. Nos despedimos, boa semana, aquelas coisas. Gostamos deles, Nina e eu.
Começo a subir a ladeira de volta, pelo outro lado. Primeira parada, frutas. Faço uma certa questão de ir à feira com fome justamente por causa desse feirante. Ganho mostras de todas as frutas que ele quer vender primeiro. Adoro. Provo todas mas compro sempre a mesma coisa. Uva sem semente para filho, manga para todo mundo, abacaxi para mim. Quando tem, jabuticaba pro namorado, mas não tinha. Nina odeia o feirante da fruta. Sem motivo algum, o rapaz é um amor. Nina late para o abacaxi, puxa a coleira, atravessa embaixo das minhas pernas e rosna para o mamão papaia. Pago e tento ir embora o mais rápido possível.
A chuva aperta.
Preciso, ainda, driblar o homem do limão, um antigo desafeto da Nina. Seguro a cachorra bem perto de mim, do carrinho, do guarda-chuva, do meu otimismo e da minha falta de noção. O homem do limão diz “é bravo, né?”. Não respondo, só aceno com a cabeça, porque a única resposta honesta seria “não, é mansinha, mas te odeia” e eu achei que o coitado do homem não merecia isso.
Seguimos, nós duas, em direção à banca dos imigrantes haitianos que vendem saquinhos com alho descascado. Uma parte bastante significativa da minha alimentação depende diretamente deles. São uma família. O filho e a Nina se adoram, mesmo ele falando com ela em um francês misturado com português, crioulo e algumas palavras em inglês. Não é como se ela entendesse bem o português, não faz muita diferença. Agora é Nina que se demora. Eu espero.
Na saída, ovos e o caldo de cana que filho pediu.
Chove ainda. A cachorra, meus sapatos e as compras ficam molhados.
Pela rua, carrinho de compras, guarda-chuva e cachorra disputam pela minha pouca coordenação motora.
Foi colocar os pés dentro de casa e, claro, parou de chover. São José das Laranjeiras, santo padroeiro dos feirantes, me odeia, só pode.
Crônica publicada no Rascunho em 01/12/2022