Preciso do RG da minha mãe. Meu pai manda por whats. Olho a miniatura e penso “meu pai é muito distraído mesmo, mandou o meu RG”. Clico. É o da minha mãe. É cada susto que a gente toma nessa vida, vou te contar.
A geração dos meus pais, que hoje está com seus 75 mais ou menos, viveu o movimento hippie, a invenção da pílula anticoncepcional, a legalização do divórcio, o golpe militar no Brasil, a guerra do Vietnã, os Beatles, o Watergate, a revolução da informática, todo o movimento da Contracultura, o homem pisando na lua, a Guerra Fria, o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria, a criação da internet. Essa geração não tinha como ser nada menos que complexa, heterogênea e interessante. Adoro ouvir as histórias do meu pai.
Minha mãe não contava histórias passadas. Ela criava histórias, então morava em um espaço que ainda não havia sido escrito, que podia ou não ser um amálgama de histórias vividas, ouvidas, assimiladas. Ela era uma narradora não confiável.
Conto, então, com meu pai para saber como foi fundada a Forja de Hefesto onde fui criada.
Começo a esvaziar o apartamento da minha tia. No mesmo armário, uma máquina de costura antiga, daquelas de ferro preto, da Singer, linda, com aparência de nunca ter sido usada e uma arma. Não sei julgar, mas espero que também nunca tenha sido usada. Guardo a máquina de costura e entrego a arma na delegacia. É cada susto.
Na casa dela, lembranças que não são minhas e que não me fazem o menor sentido. Não há atribuição de significado.
Um cachimbo guardado com todo carinho, embalado em um papel de seda, há de fazer sentido para alguém. Não para mim. Ela não fumava cachimbo, não lembro de absolutamente ninguém na família que fumasse cachimbo. Crio na minha cabeça a figura de um amante. Talvez ex, talvez falecido, não importa. A julgar pelo papel de seda, o cachimbo não é usado tem anos. Sei de um namorado motoqueiro, esse ficou famoso na família. Será que fumava cachimbo? Não combina muito com o personagem mas, por outro lado, nesse grupo de pessoas, nada combina com nada mesmo. Sei lá.
A TV eu dei para o porteiro. Os cigarros, joguei fora. Começo a perceber que isso não terá fim. Quero jogar tudo fora e sair correndo. As memórias que não são minhas me sufocam.
Pego um quadro que minha mãe pintou, a máquina de costura, fotos da família, alguns livros e documentos que imagino que um dia eu possa precisar.
Fico tentada a guardar um aparelho de chá japonês. Lindo. Novo. Me dou conta que, assim como ela, eu jamais vou usar. Deixo para trás.
É uma vida guardada. Uma vida que não me pertence. Uma vida que estranho, com símbolos que não sei ler.
Lembro de um Patolino de pelúcia que tenho guardado, com todo cuidado. Presente de um amigo muito querido, toda uma longa história. Quando eu morrer, quem for esvaziar a minha casa certamente ficará olhando para o Patolino de pelúcia com a mesma estranheza com que olhei para o cachimbo.
Objetos não possuem significados intrínsecos, apenas os que atribuímos a eles.
Não consigo mais ver nada.
Preciso ir embora.
Ao levantar, me dou conta de que não é apenas em aparência física que me assemelho à minha mãe.
É cada susto.
Vou embora.
Crônica publicada no Rascunho em 08/06/2023