Artigo publicado na Next Brasil nº 2, antes da minha entrada no corpo editorial.
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“Ferro enferruja com o desuso;
água parada perde sua pureza e no frio congela;
da mesma forma, a inatividade também tira o vigor da mente.”
– Leonardo da Vinci

Rápida bio
Leonardo nasceu ilegítimo, de mãe pobre, às três da manhã do sábado de 15 de abril de 1452. Aos cinco anos, foi largado pela mãe na casa dos avós paternos e, a partir de então, foi criado pela família paterna. Na certidão de nasci­mento de Leonardo consta ape­nas o nome do pai. Leonardo foi filho de mãe ausente. Em 1468, seu pai mostrou alguns de seus desenhos a Andrea del Verrocchio. No ano seguinte, Leonardo ingressou no atelier de Verrocchio onde aprendeu algo extremamente valioso: andar sempre com um caderno de ras­cunhos para todo canto. Preciso voltar a ter esse hábito.
Em janeiro de 1478, Leonardo recebe sua primeira encomenda importante: uma pintura de altar para a capela Bernhard na sede do governo em Florença, que ele não terminou. Em março de 1481, recebe outro pedido grande, dessa vez para a igreja San Donato a Scopeto, que Leonardo tam­bém não concluiu. De 1489 a 1494, Leonardo trabalha na estátua do cavalo de Francesco Sforza em Milão, encomendada por Ludovico Sforza, o mesmo mecenas que encomendou A Última Ceia, que Leonardo pintou de 1495 a 1498. Em 1500, retorna a Florença. Em 1503, pinta a Mona Lisa, retra­to da esposa de Francesco del Giocondo, que nunca recebeu o quadro encomendado.
De 1508 a 1512, serve ao governador francês em Milão, Charles d’Amboise. Em 1512 os franceses são expulsos de Milão e, em 1513, da Vinci vai para Roma trabalhar para Giuliano de Medici, irmão do Papa Leão X.
Fidelidade política não era o seu forte. Em 1516, muda-se para a França com dois alu­nos seus, Francesco Melzi e Giocomo Salai, ocupando o lu­gar de pintor da corte. Em 23 de abril de 1519, escreve o seu testamento, deixando todos os seus manuscritos, desenhos, instrumentos e ferramentas para Melzi, e suas pinturas (inclusive a Mona Lisa) para Salai. Morre nove dias depois, aos 67 anos.
Leonardo da Vinci terminou 12 pinturas e milhares de desenhos. Considero esse fato muito significativo. Os desenhos são sempre a origem do pensamento, da criação. Ninguém projeta alguma coisa sem desenhá-la antes. Leonardo foi um criador, não um arte-finalista, e isso é suficiente para defini-lo como gênio, penso eu. O desenho, justamente por ser o princí­pio, mantém-se moderno e atual. As mídias mudam, as técnicas evoluem, mas um bom desenho será sempre um bom desenho. Como disse o fotógrafo Cartier-Bresson, o importante mesmo é saber desenhar bem.
O Gênio
Alto, louro, cabelos longos e cacheados, Leonardo canta­va divinamente e tinha bom papo. Era um sujeito distraí­do, desatento, volúvel, cheio de caprichos e que se ente­diava facilmente. Leonardo era considerado um homem belo, sedutor e bem sucedido. Gozou de fama e popularidade enquanto vivo. Reza a lenda que a população de Florença aguardou durante dois dias em frente a seu atelier, na rua, só para poder ver um de seus quadros. Esse negócio de artista sofredor, pobre e que só ganha fama depois de morto surgiu mais tarde, com o Maneirismo.
Leonardo foi arquiteto, de­senhista, pintor, músico, engenheiro, cantor, alpinista, naturalista, inventor e mais um monte de outras coisas igualmente impressionan­tes. Foi ele quem inventou o helicóptero, a tesoura, o carro blindado e várias má­quinas de guerra. Um homem incrível, que pertenceu a dois grandes mundos: o da arte e o da ciência. A genialidade de Leonardo pode ser lida em qualquer biografia sua. O que me impressiona é a serieda­de com que ele se dedicava a um determinado projeto. Não deixe o fato de ele não ter terminado muitos deles confundir você – Leonardo se cansava rapidamente, e uma vez que atingisse o co­nhecimento do assunto, este perdia a graça. Contudo, ele era obstinado, disciplinado e sério em seus estudos.
Leonardo passou anos como interno em um hospital e dissecou mais de trinta cadáveres para aprender anatomia, coisa proibida na época. Fatos como esse são o que mais me apaixonam nele. Tenho um certo repú­dio a esses pretensos profis­sionais de hoje em dia que fazem as coisas sem entender os porquês. Existe hoje uma grande confusão entre ferra­menta e criação por causa do computador. Não basta saber usar um programa, é preciso entender os motivos de cada coisa. A informática é uma ferramenta ímpar, mas, sob o aspecto do embasamento, é o câncer da criatividade.
Diga-me com quem
Leonardo e Niccolò Machiavelli, autor de O Príncipe, fo­ram bons amigos. Maquiavel era um conselheiro impor­tante em Florença e prova­velmente a sua influência conseguiu para Leonardo dois importantes trabalhos: uma obra para desviar as águas do Arno (impedindo que fossem até Pisa, cidade rival na época) e um mural – Batalha de Anghiari – para o Palazzo Vecchio. A Signoria (corpo governante, algo como uma prefeitura) entregou a ta­refa a dois rivais, Leonardo e Michelangelo. Os dois pinta­ram em paredes diferentes da mesma sala as suas versões para o mural, numa espécie de competição pública. A situação se tornou um even­to popular justamente pelo fato de os dois não se darem. Nenhum dos dois cumpriu o contrato. Michelangelo fez um enorme esboço da Batalha de Coscina, mas nunca a pintou, ao passo que Leonardo terminou apenas a parte central de seu mural.
A Renascença foi repleta de grandes rivais. Leonardo, Michelangelo e Rafael se admiravam mutuamente e competiam o tempo todo. Antes de a Mona Lisa ter sido terminada, Rafael visi­tou o atelier de Leonardo e ficou tão impressionado que adotou o seu esquema de re­trato (meia figura virada dois terços na direção do observa­dor, balaustrada com pilares ligando os planos e objeto próximo à extremidade fron­tal do quadro). Este modelo de retrato perdurou por déca­das. Por outro lado, o único desenho que Leonardo fez de uma outra obra, que não sua, foi o David, de Michelangelo. Eles competiam pelos mesmos trabalhos e por quem desen­volvia melhor uma técnica ou estilo. Briga de cachorro grande, sem dúvida.
Inventum
A casa em que Leonardo nasceu e viveu seus cinco pri­meiros anos, em Anchiano, era pobre, pequena, mal ilumina­da e de poucas janelas, como mandava a arquitetura cam­pesina da época. Criou para si um universo belo e rico, oposto à sua realidade natal. O grande homem renascen­tista se recriou, transformou a sua primeira infância ruim e de poucos carinhos em uma vida plena e cheia de admira­ção. Pegou a sua vivência do abandono materno e pintou a mulher mais bela e famosa do mundo. Leonardo é reconheci­do por suas criações e, de fato, ninguém mais, antes ou depois dele, mereceu o título de gê­nio. Entretanto, poucos falam de sua maior criação, a de si mesmo. Em poucos momentos o termo “renascentista” fez mais sentido para mim.
Às vezes me pergunto se o que vivemos hoje não é uma idade “remedieval”. Tempos confusos, com uma sociedade quase feudal, de tão injusta. A burguesia, que nunca foi lá essas coisas, está cada vez mais decadente e burra, e se não investir em cultura – a exemplo da época do mecenato – vai ser comida viva. As pes­soas precisam se reinventar o tempo todo para sobreviver, mesmo que em uma sala de chat para prazeres imediatos. Criamos personas, nos sub­dividimos em profissionais, parentes, amigos e outros inúmeros sub-rótulos de nós mesmos. Não somos mais pessoas inteiras. É necessá­rio saber “separar as coisas” – “amigos, amigos, negócios à parte”. Os grandes centros carregam consigo a solidão da pólis e sua estratificação so­cial. Conviver consigo mesmo já é difícil; com pedaços de si, então, nem se fala. Precisamos nos inventar a cada instante. E é justamente este aspecto da nossa sociedade que torna Leonardo da Vinci tão neces­sário. Precisamos reunificar as nossas vidas. Precisamos juntar arte com economia e colocar um pouco de poesia na política.
Talvez a internet seja um Leonardo contemporâneo, nos falando em zeros e uns como em um espelho de nossos tantos idiomas. A internet é a democratização da informa­ção e da expressão individual e, portanto, da arte. Ela nos traz novos horizontes, notí­cias frescas d’além mar. É o mundo sendo solucionado pela navegação mais uma vez. A boa notícia é que depois de tudo isso vem algum tipo de renascimento. A má é que só vem com uma reestruturação profunda das relações sociais e trabalhistas, e isso não é lá muito rápido nem indolor.