Olho a glicerina derreter na panela e penso no quanto estamos viciados nas soluções prontas, habilmente fornecidas pelo capitalismo.
Essa crônica sai no dia do primeiro jogo do Brasil. Eu sei que a Copa acontece de 4 em 4 anos mas nunca lembro e sempre me surpreendo. Teve uma Copa, décadas atrás, em que eu saí do escritório em busca de papel para a impressora e estava tudo fechado, ruas desertas, nem carro passava. Lembro até hoje da sensação aterrorizante que tive de fim do mundo até que eu lembrasse do raio do jogo de futebol. A sensação pós-apocalíptica desse dia ainda me causa calafrios.
Quando a pandemia nos trancou em casa, foi esse o emocional que me voltou. Assim como grande parte do planeta, eu também comecei a procurar soluções domésticas para coisas com as quais contávamos como serviço ou produto comercial.
É todo um devir eremita. É um caminho sem volta. Começa com pão e quando a gente vê já está googlando como se faz manteiga ou compota de gengibre. Estou envolvida com drogas cada vez mais pesadas: fazer em casa sabonete, spray de passar roupas, pães, roupas básicas, esfoliante e uma longa lista de coisas que, certamente, seria mais rápido e prático comprar pronto. Brinco, mas minha motivação não é nem o isolamento e nem uma declaração contra o sistema. Durante a pandemia, foi por uma necessidade real ou imaginária/paranoica (não importa). Hoje, faço por achar divertido, simples assim.
O problema é que me distraio com muita facilidade. A glicerina ferve e inunda todo o fogão. Presta atenção, Carolina. Eu me canso de mim mesma várias vezes ao dia. Opto por tomar um café antes de encarar a limpeza e, claro, esqueço.
Nina Simone suspira. A cachorra chegou tem pouco tempo mas já compreendeu o déficit de atenção da sua humana. Os quadrúpedes domésticos costumam ser mais rápidos nesse tipo de percepção que os bípedes.
Deixo a glicerina e o café para trás e decido sair com Nina. Caminhamos por horas. Difícil, quase impossível, dizer quem está levando quem para passear.
Lá fora no mundo, bolsonaristas cantam hino para pneu e pedem ajuda para extraterrestes com a luz do celular. O que mais me diverte é a noção de que a luz do celular alcançaria a estratosfera ou além. Gosto do otimismo envolvido mas não gostaria de ser humorista nesse país. A competição é desleal.
As instruções falam para não colocar o sabonete na geladeira. Eu coloco, é claro.
Adoro cometer erros novos. Estou cansada dos velhos.
Tem a deliciosa fala do Neil Gaiman, de 17 de maio de 2012, para The University of the Arts, de onde destaco um trechinho:
I hope you’ll make mistakes. If you’re making mistakes, it means you’re out there doing something. […] Life is sometimes hard. Things go wrong, in life and in love and in business and in friendship and in health and in all the other ways that life can go wrong. And when things get tough, this is what you should do. Make good art.
Não vou traduzir, não. Deu preguiça. Deus já inventou o tradutor, tá de boas.
Arte eu não sei, mas meus sabonetes ficaram ótimos.
Crônica publicada no Rascunho em 24/11/2022