Coloquei a cápsula. Esperei a luzinha ficar verde. Apertei para preparar o café e fui fazer outra coisa. Volto, um banho de café. Esqueci de botar a caneca embaixo.
Tem um meme que diz que a gente busca num relacionamento o que não teve na infância, e aí responde algo bobo, tipo o nome de um brinquedo. Eu procuro um namorado que tenha daquelas máquinas de café expresso que colocam o copinho automaticamente.
Nina me leva no parque. O celular ter ficado em casa é uma parte esquecimento, uma parte desejo. Ato falho. Ok, quem eu estou querendo enganar? Deixei de propósito mesmo.
Não tenho vaga onde moro e paro o carro a duas quadras daqui. Saio de casa, chove. Chego no estacionamento sem a chave do carro. Volto. Saio sem guarda-chuva. Desisto e vou molhada mesmo.
Tiro duplas de potinhos do freezer, esquecendo que filho não almoçará comigo. Agora olho para a comida descongelada em cima da pia, sem saber exatamente o que fazer.
Abro a agenda oitenta vezes no dia, com medo de ter esquecido algo importante. E, claro, pego o celular para ver uma coisa, vejo outras 50, esqueço, preciso pegar o celular de novo, e assim passamos o dia, minha cabeça e eu.
Cheia de coisas para fazer, gasto tempo online descobrindo viagens hipotéticas de trem, a partir de cidades onde não estou, para cidades onde não irei.
Também coleciono receitas no Pinterest.
Uma amiga do meu filho usa o ChatGPT da forma mais brilhante que vi até agora. Ela fala o que tem na geladeira e a IA dá uma receita. Essa moça vive no futuro. Gênio. Essa geração já veio pronta para o mundo. Eu não, eu ainda estou perdida.
M. me deu de presente A estrada, de Manu Larcenet, adaptação da obra de Cormac McCarthy para os quadrinhos. Lindíssimo. Ele me conhece bem.
D. me deu de presente uma camiseta com os traços de cada gradação de lápis grafite. Ela me conhece bem.
Não é meu aniversário, nada. Suspeito que a minha cara de estresse e cansaço esteja instigando as pessoas próximas a terem pena de mim. Me olho no espelho. Entendo. Entendo e agradeço.
Final de semestre. Professora. O estado de cansaço é tal que a cabeça não funciona mais para as coisas mais simples do dia a dia.
Foram 1.110 notas lançadas. Dessas, a esmagadora maioria com um feedback individual escrito, aluno a aluno, no sistema. Por causa de uma mudança de sistema e eu ter errado a inserção da fórmula de notas, fiz isso quatro vezes. Não tem como a gente não ficar doido.
Nina não gosta de encerramento de semestre. Tem menos parque. Ainda por cima, chove. Alguém me ensina como ter forças para dizer praquela carinha que não, não vamos sair? Suborno Nina com agrados, colo e um filminho. É feriado. Ela não entende mas aprova.
Eu durmo no filme, claro. Nina, gentil, dorme também. Acordamos as duas um pouco tortas e com torcicolo. Algumas pipocas espalhadas no sofá.
A chuva parou. Faço outro café. Dessa vez, sem inundar a cozinha. Amarro o cabelo e saio, roupa e cara amassadas, com Nina. Nós duas estamos precisando de parque para não começar a morder pessoas. Nós duas não, que Nina Simone é uma santa. Eu estou precisando de parque para não começar a morder pessoas.
Crônica “Banho de café”, publicada no Rascunho em 30/05/2024. Ilustração: FP Rodrigues.