Sonho com aguadas de nanquim, pinceladas de aquarela, rasgos de carvão e traços a bico de pena. É um sonho bom. Acordo sem querer acordar, acordo querendo pintar, mas a agenda é impiedosa e ditatorial.
Infelizmente, a loteria não chegou e sigo pagando boletos. Levanto a contragosto.
Lembro de uma aula que dei recentemente sobre a Jornada do Herói e os arquétipos. Sou um anti-herói involuntário. Estou muito mais para Bilbo Bolseiro do que para Joana D’Arc ou Gilgamesh. Quero mesmo é ficar na minha toca. Se possível, pintando.
O dia passa sob influência do sonho e tenho dificuldade em me concentrar no que me dizem. Escuto tudo com uma certa distância, como uma trilha sonora da vida. Quase como se a suspensão da descrença fosse necessária também na vida real.
Independentemente do meu talento para a distração e para sonhar acordada, aqui no Brasil estamos precisando de uma “suspensão da crença”. Especialmente na crença de que o capitalismo liberal é a resposta.
Eis que chega a tal sexta-feira das grandes promoções, Black Friday. E, com ela, a surreal promoção de gás de cozinha. O Twitter da Ultragaz anunciou: desconto de 30 reais no botijão azul.
Como diz meu amigo Mauro Amaral: “A questão é que faz sentido nesse lugar sem sentido que é esse país. Isso é que desestrutura”.
Supermercados grandes também entraram na onda. A promoção? Carne, frango…
Chegamos em um momento em que Black Friday de botijão de gás ou comida é algo perfeitamente integrado à lógica vigente.
Essa é a realidade em que uma mãe que rouba miojo para alimentar os filhos vai presa. Veja, é a mesma lógica. Botijão de gás e comida se tornaram itens do consumismo, não mais de primeira necessidade. É o mesmo problema.
Foi o Mauro também quem me apresentou à absurda propaganda do novo iPhone, com trabalhadores e entregadores de aplicativos. É um celular que custa aproximadamente um ano de salário mínimo. Colocar o produto nesse contexto é, pura e simplesmente, ofensivo.
Ou aquela ridícula mise-en-scène do genocidinha júnior em Dubai vestido de sheik enquanto a população volta a enfrentar a fome. É tudo a mesma coisa. É tudo a mesma ofensa.
A última é o surto de sarna humana no Brasil, diretamente relacionado aos enganados que tomaram e aos criminosos que prescreveram Ivermectina para Covid e, com isso, criaram a super-resistência do Sarcoptes scabiei, ácaro responsável pela escabiose.
Parafraseando o bom e velho Darcy Ribeiro, a crise ética no Brasil não é uma crise, é um projeto. Muito bem-sucedido, por sinal.
É preciso estômago forte para viver aqui e não perder o réu primário. Como prevenção de crimes (meus), vou abrir um novo sketchbook, o vidro de nanquim e uma garrafa de vinho.
Crônica publicada no Rascunho em 02/12/2021