Para agendar um exame, preciso fornecer para a atendente todos os meus dados. CPF, RG, endereço, CEP, telefone, carteirinha do plano, data de nascimento, e-mail, tipo sanguíneo, etnia, gênero, nome completo, nome da mãe. Não, isso não é hipérbole. Exame agendado. Ao chegar no laboratório, recebo uma ficha para preencher, à mão, exatamente as mesmas informações. Não, não pode simplesmente olhar no sistema. Norma da empresa, senhora. RG. Sim, só tenho digital. Precisa enviar pro e-mail do laboratório, senhora. A vontade que dá de responder “é lei federal, você precisa aceitar o RG digital, quer você queira ou não”. Nem começou o exame e já quero ir embora. Engulo. Envio o inferno do documento. Cinquenta e cinco minutos de burocracia para cinco minutos de exame.
Na TV, porque, claro, há uma TV, há sempre uma maldita TV, passa Big Brother. Não há nada mais distópico do que uma distopia como entretenimento. George Orwell, vejam só, era um cara moderado, afinal de contas.
Lembro de outra vez. Recebi alta, mas precisei voltar ao hospital em urgência, por uma complicação no pós-cirúrgico. Ao chegar, me perguntam tudo de novo. Perguntei para a atendente se ela achava que eu tive alta no dia anterior, fui em casa, me mudei em menos de 12 horas e decidi voltar ao hospital só assim, por esporte. A mulher-robô não respondeu.
Meu cartão de crédito mudou. Tento atualizar a assinatura de um jornal impresso, em nome do meu filho. Não consigo. O CPF não é o mesmo. Não consigo trocar o CPF de quem paga. Não consigo trocar o cartão. Tento o chat. O chat não pode resolver o assunto, encaminha para o telefone. Ligo. O telefone diz que o atendimento é por WhatsApp, que não tenho. Aviso que não tenho, por escrito. Peço contato por e-mail. Mando mensagem pelo sistema pedindo o cancelamento. Sou ignorada. Entro no “Reclame Aqui”. A resposta? Que minha reclamação não procede porque não respondi à mensagem automática do WhatsApp. A única dúvida possível é se é burrice ou má-fé.
Um outro sistema, de um provedor de internet, tem a opção de notificar o pagamento de contas. Infelizmente, não é possível enviar o comprovante de contas atrasadas quando se tem uma conta atrasada. Ainda não descobri pra que serve o sistema.
A maior prova do meu pacifismo é que essas pessoas todas ainda estão vivas.
Burocracia só pode ser uma invenção masculina, não é possível. Não satisfeito em uma existência hegemônica, o desgraçado ainda vê necessidade de impor ao mundo problemas para vender soluções. Uma solução em busca de um problema, a base do capitalismo predatório.
Essa herança romana me enlouquece. Asterix estava certo. Não sei como existem profissionais que vivem disso, assim, de propósito. Contadores, por exemplo. Olho para um contador como quem olha para um marciano. Ainda bem que existem, mas pertencem a outra espécie animal.
A burocracia, além de estúpida, faz com que se perca dinheiro, tempo, clientes. A minha paciência, que nunca foi grandes coisas, vai de mal a pior.
Imaginem só se na literatura ou nas artes a gente vivesse assim.
Desculpe, senhora, mas para comprar esse lápis nós precisamos do seu comprovante de residência, documento original com foto e declaração de próprio punho escrita a lápis. Ah, a senhora não tem um lápis? Sinto muito, são normas da empresa. Se a senhora não tem um lápis não pode comprar um lápis.
Dois ingressos para Clara Sola, por favor. Pois não, precisamos do seu passaporte válido, duas fotos 3×4 e de uma cópia autenticada do seu diploma em Cinema.
Senhor, para ler esse livro o senhor precisa comprovar que já leu esse livro.
(Não dá ideia, Carolina, não dá ideia.)
Kafka, tolinho, achava que escrevia ficção.
Crônica publicada em 10/02/2022 no Rascunho