Preciso de um período de imersão total, para terminar o pós-doc, e aproveito cinco dias seguidos sem aulas para trabalhar em outra coisa. Sim, eu procrastino um trabalho com outro.
Uma amiga me manda mensagens fofinhas motivacionais todos os dias. Está viajando e, mesmo à distância, me dá força.
Um amigo me deu um pouco do feijão que fez.
Meu filho cuidou da casa, da cachorra e de mim.
Namorado veio salvar minhas costas.
Eu tenho poucos, mas tenho os melhores amigos.
O que eu não tenho, entretanto, é a melhor cachorra. Nina Simone já comeu um sofá, uma poltrona, cinco livros, duas mochilas, uma bolsa, um guarda-chuva, um estojo, duas almofadas, um squeeze, um travesseiro, oito chinelos, três cobertas, duas guias, cinco bichos de pelúcia e três tupperwares. É linda e carinhosa mas não vale a ração que (também) come.
Nosso veterinário, que é tão ruim para nomes quanto eu, nem se dá mais o esforço de tentar lembrar o nome do bípede motorista que leva seu paciente até lá. Acena com a cabeça um “como vai” quase seco, se abaixa e conversa com a cachorra todo doce e carinhoso.
Não o culpo. Além de, né, por favor, é um doguinho, eu também esqueço nome de vizinho, de aluno, de colega de trabalho, de cliente, de fornecedor e, principalmente, de parente.
O rosto, entretanto, lembro o resto da vida. Aí vem o dia das crianças e, de repente, um bando de gente muda a foto de perfil para uma de infância. E aí eu já não sei mais quem é quem.
Reclamo da destruição canina. É normal, diz o veterinário, ela é filhotinha, diz ele, ela vai parar de destruir a casa, diz ele, é só muita energia, diz ele, ela é inteligente, diz ele. Não sei, não. Ele está sempre do lado do cachorro, me parece meio suspeito.
Dr. Renan é irritantemente jovem. Extremamente competente, só não é o médico da família toda porque o CRMV o proíbe de atender humanos. Lembro dele quando vou fazer um exame. Pensando bem, não quero que o médico faça carinho na minha orelha e me chame de “minha flor”. Carinho na orelha só de uma pessoa muito específica. Talvez o CRMV esteja certo, afinal de contas.
Voltamos para casa, Nina Simone e eu. Por birra, pelo sofá, pelo meu chinelo favorito, pelo meu estojo, coloco um samba no Spotify.
É o samba-enredo da Mangueira do ano que vem.
Oyá, oyá, oyá eô!
Ê Matamba, dona da minha nação
Filha do amanhecer, carregada no dendê
Sou eu a flecha da evolução
Aproveitando a falta de testemunhas, canto junto.
A vira-latas, que não honra nem o nome que tem, gosta.
Voltamos, então, as duas sem pedigree, felizes da vida com os mais variados carinhos.
Crônica publicada no Rascunho em 13/10/2022.