Na minha juventude, quando os pterodátilos ainda habitavam os céus, meus amigos e eu frequentávamos um bar no Rio de Janeiro que carinhosamente apelidamos de “cinquentinha”. Essa é a minha quinquagésima crônica no Rascunho e imediatamente fui puxada para as calçadas imundas onde sentávamos, no meio da rua, para tomar a saideira, aquela última cerveja da noite.
Normalmente chegávamos por volta das 5 da manhã, já sem dinheiro, vergonha na cara, juízo ou noções básicas de higiene. O bar servia chopp a cinquenta centavos através de um balcão. Ou seja, não era exatamente um bar mas sim uma porta. E só o fato de que chamávamos aquilo de bar já é um bom indicativo do estado em que costumávamos chegar no local. A última cerveja rapidamente se transformava em penúltima e ficávamos lá até sermos varridos pelos garis que, com toda razão, nos julgavam.
No meio-fio em frente ao cinquentinha vivi romances, epifanias filosóficas, levantes políticos, construí e destruí relacionamentos, criei, escrevi, vi e ouvi.
Foram muitas manhãs voltando para casa andando descalça pela rua, sapatos na mão, enquanto todo o resto da população não só já tinha acordado como a maioria já estava inclusive trabalhando.
Não é que nós não trabalhássemos, muito pelo contrário. O grupo era formado quase que integralmente por profissionais freelancers. Então, tínhamos horários flexíveis. Era um outro Rio de Janeiro, um outro Brasil, onde esse tipo de coisa era perfeitamente possível.
Guardo amigos queridos dessa época. Ser próxima de pessoas com quem partilho mais de 30 anos de amizade é um dos meus maiores orgulhos. Relacionamentos familiares, afetivos, sexuais ou de amizade precisam de cultivo, cuidado e manutenção. Não descarto pessoas por pouco. Essa política do cancelamento que existe hoje, salvo em casos realmente graves, sempre me pareceu autoritária.
Desse grupo de bêbados mantivemos vínculos fortes. Hoje muitos de nós são pais, empresários, professores. Muitos saíram do país. A maioria saiu do Rio de Janeiro. A vida foi levando a gente para outros rumos, outros cantos.
Duvido, entretanto, que exista um cinquentinha em Toronto, Frankfurt, Londres, Paris, Lisboa ou Berlim. Essa escolha consciente por locais de segurança alimentar duvidosa é uma instituição brasileira. Está aí o carro da pamonha que não me deixa mentir.
Não sou dada a grandes saudosismos, mas lamento que essa cidade não exista mais. Com a idade, o fígado e a prudência entraram em acordo mas adoraria ver, nem que fosse pela janela, saboreando um chá, a cidade acesa, viva, movimentada, musical e alegre.
Nós já fomos alegres.
Não se esqueçam disso.
Podemos voltar a ser.
Crônica publicada no Rascunho em 09/09/2021