Crônica "Completamente inútil", publicada no Rascunho em 10/11/2022. Ilustração: FP Rodrigues. https://rascunho.com.br/liberado/completamente-inutil/

Preciso dar o vermífugo para a cachorra. Nem tento. Adio quatro dias para coincidir com a ida ao veterinário e peço para ele. O homem enfia o comprimido dentro da garganta da cachorra e fecha sua boca, até ela engolir. Faz isso sem o menor medo de perder a mão, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Depois de sofrer alguns dias tentando resolver uma configuração do meu celular, resolvi aceitar minha incompetência e entreguei para filho. Não levou nem um minuto. Um. Minuto. É muita humilhação.

Namorado trocou o pneu do carro em 15 minutos e me contou isso completamente en passant, como se nada houvesse. Fosse comigo, eu tinha levado 15 minutos só pensando em para quem ligar pedindo ajuda. Talvez até chegasse a lembrar da seguradora do carro. Talvez.

O mesmo ômi instalou um chuveiro elétrico e duas torneiras. Assim, na minha frente. Nem foi aquela de call the guy como um ghost writer e ficar com os créditos. Eu vi. A minha participação no processo foi pegar a fita isolante que caiu no chão quando ele estava lá em cima da escada.

Gente, ômi é uma coisa muito prática.

Uma aluna aparece de cabelo cortado. Comento. Ela responde que cortou em casa. Estava perfeito. Se eu corto meu cabelo em casa, fico parecendo um poodle viciado em crack.

O mesmo vale para manicure. Essa eu ainda insisto em fazer em casa porque a minha falta de jeito é tanta que eu sempre estrago a unha no instante em que saio do salão. Então, acho melhor o ligeiramente torto e seco do que o úmido e estragado.

Não vou nem falar de potes de palmito, aquele objeto inabrível. O ódio, minha gente, é real. Mas eu sou uma mulher independente, afinal de contas. O último pote de palmito foi aberto com uma chave de fenda e um martelo. Posso não ter força, mas sei como a pressão do vácuo funciona. Chave de fenda, uma martelada na tampa, tampa furada, sem pressão, eureca. Não é um método muito elegante, mas funciona.

Filho lá pelas tantas se irritou com uma porta empenada, pegou um formão e resolveu. Estava empenada desde 2017. Ele levou cinco anos para se irritar e cinco minutos para consertar. Isso diz muito sobre ele.

Os pezinhos da poltrona entortam. Pai vai lá e conserta. Conserta assim como se fosse algo que pessoas fazem normalmente.

Tenho muita admiração por quem consegue resolver o aspecto prático do dia a dia com tanta destreza, rapidez e facilidade.

Sou perfeitamente capaz de citar uma norma ABNT de cor; te dar mil indicações de autores para ler de acordo com a sua pesquisa ou interesse; discorrer longamente sobre um determinado pintor. Sou mestre também em olhar para o nada, me distrair com qualquer coisa e esquecer nomes das pessoas.

A maior parte do que eu sei fazer é, fundamentalmente, sem qualquer utilidade. Lembro da célebre frase do Oscar Wilde, “toda arte é completamente inútil” e, mesmo não estando à altura, me sinto, pelo menos, em boa companhia.

Crônica publicada no Rascunho em 10/11/2022