Pessoas que me são caras e pessoas muito sozinhas frequentemente são sinônimos. Existe algo na solidão e, principalmente, em pessoas que conseguem viver nela, que me atrai.
Ser e viver sozinho não é para qualquer um. E tampouco são sinônimos.
A pandemia jogou um holofote em cima da situação. Nos dividimos em dois tipos. De um lado, aqueles que não veem a hora de voltar a trabalhar presencialmente. De outro, aqueles que torcem para que o trabalho remoto continue no mundo pós-covid.
No fundo, acho que a divisão não diz respeito ao trabalho em si, mas sim de quem precisa ou não da socialização do cafezinho. Nenhum julgamento de valor aqui, veja bem. Tudo bem ser um ou outro. Apenas por uma questão de empatia, advogo em favor dos solitários.
A solidão que me interessa não é a de estar sozinho ou de se sentir sozinho. É a de se entender e se permitir estar desacompanhado. Envergonho-me em dizer que levei décadas para chegar aqui.
Do estar sozinho, muitos, mais importante e melhores, falaram. O que me aflige é a solidão de significado.
Eu leciono, entre outras coisas, teorias da comunicação. Deveria estar no currículo do prezinho. Signo, significante e significado. Nós nos comunicamos com outros a partir de um denominador comum, que é a linguagem. A linguagem é construída e só existe na interação social. É uma ficção com a qual todos concordamos.
Supondo que ouvir e ser ouvido é um objetivo em comum com o outro, lamento, mas você não tem direito ao seu significado individual. Assim como você não tem direito aos seus próprios fatos. As palavras têm seu significado atribuído socialmente e não a partir de uma escolha individual. Desce daí, companheiro, que você não é Machado de Assis.
Existe, claro, margem para interpretação. A casa que eu atribuo ao signo da palavra “casa” é diferente da sua. Pode até mesmo ser bem distante, como casa de botão de camisa, o lugar onde o wifi conecta automaticamente, a Comunidade Sul-Americana de Nações ou uma cidadezinha nos cafundós do Arkansas. Entretanto, a palavra “casa” não pode significar, por exemplo, a espécie Panthera tigris (tigre, não precisa googlar).
Há um limite na comunicação que é, justamente, o do acordo que temos com os outros indivíduos quanto ao significado das palavras, das expressões, do texto. Lembrando, claro, que isso se modifica de acordo com o contexto. “Estado”, “sítio” e “estado de sítio” possuem significados completamente diferentes. Essa é a diferença fundamental entre saber usar o Google tradutor e ser fluente em um idioma.
Isso, obviamente vale para outras linguagens também. Uma placa com um cervo correndo, por mais bizarro que possa parecer no Brasil, é imediatamente compreendida como um alerta para animais silvestres na estrada, mesmo a gente não vendo cervos com muita frequência por aqui. É um acordo de linguagem.
Vivemos uma época de fake news, fake significados, fake palavras, fake relações. Eu estou cansada de tanta gente maluca e agressiva à minha volta que é incapaz de interpretar texto.
Claro, nobre leitor, você há de falar, com razão, que é suspeito quando começamos a achar que todos estão loucos menos nós. Por favor me leve chimarrão no hospício.
Tenho um consolo, entretanto. Há uma enorme dignidade em ser capaz de enfrentar os nossos demônios na calada da noite, sozinhos, olhando para o teto. É uma situação sem possibilidade de fuga. Ou os enfrentamos, ou eles nos devoram.
Pessoas sozinhas são, por definição, corajosas e autoconscientes.
A solidão é um tipo de terapia à força.
É divã em Guantánamo.
Freud travado na cocaína.
Lacan pragmático.
Jung versão BDSM.
Você entendeu.
Crônica publicada no Rascunho em 26/11/2020