A única certeza que tenho é a da insuficiência. Às vezes precisamos usar todas as nossas forças para organizar o presente. Foi o caso, quando tive vontade de chorar naquela madrugada. Aquela madrugada em que, mais uma vez, estava sozinha para fazer o trabalho de uma aldeia. O cansaço caiu sobre mim de uma forma inescapável, como um soterramento.

Não aconteceu nada de novo. Não houve nenhum dado inédito. Foi só mais uma noite. Foi só mais uma crise. Foi só mais um dia. Foi só mais… Vida normal para todas as mulheres, mães ou não.

A gente espera a noite acabar, recolhe os pedaços espalhados pelo chão, emaranhados no lençol, espirrados na mesa de cabeceira, suados, grudados no celular. São pedaços de afeto, pedaços de gente, pedaços de histórias. Recolhe, gruda com a força da raiva e levanta.

Quantas de nós recebemos menos do que merecemos, menos do que precisamos, menos do que poderia ser? E seguimos. Ficamos. Continuamos.

Cheguei até aqui, olha o quanto eu já aguentei, não faz mais diferença, o problema sou eu, ele vai mudar, ele está só cansado, ele trabalha muito, é o melhor que eu vou conseguir. E ficamos.

Mulher é um bicho que nasce com a balança quebrada. Levamos muito, muito tempo para fazer essa medida funcionar. O quanto ficamos porque vale à pena, o quanto ficamos porque nos achamos tão lixo que acreditamos que é tudo o que merecemos? Como medir?

Como acordar um dia e perceber que não era essa a vida que queríamos? Como levantar da cama para uma vida que não deveria ser a nossa? Algumas perguntas criam raízes na cabeça da gente.

Tem aquelas de nós que, além de tudo, como se não bastasse, como se já não fosse difícil o suficiente, somos também mães. Algumas, ainda mais, somos mães sozinhas.

Nós, mães, frequentemente confundimos amor por filho com amor pela família. Não são sinônimos. Uma resposta comum é que filho foi a melhor coisa que aconteceu etc. É clichê mas é verdadeira. Quantas de nós olhamos para dentro e pensamos que filho é o único pedaço de nós que queremos manter?

E então nos agarramos à maternidade como uma definição de nós mesmas. Passamos a ser mãe antes de ser pessoa. Essa inversão de valor ou, no mínimo, inversão de cronologia, nos custa caro. Nos custa nossa identidade. Nos custa tudo.

Levantamos porque filho. Continuamos porque filho. Fazemos porque filho. Precisamos aprender que nem sempre devemos ficar em um relacionamento ruim porque filho.

Precisamos estar bem para conseguirmos cuidar do outro. Então, de nada adianta você ficar por causa de filho se, para cuidar de filho, você precisa estar bem.

Precisamos sempre lembrar da lição de vida que são as instruções de emergência em aviões. Nunca prestamos atenção. Deveríamos. Nos dizem, claramente: “Em caso de despressurização da cabine, máscaras cairão automaticamente à sua frente. Coloque primeiro a sua e só então auxilie quem estiver ao seu lado.”

A vida vem sem manual, mas de vez em quando tem algumas instruções de segurança. É só prestar atenção. E lembrar que, em caso de emergência, portas laterais se abrirão.

 

Crônica publicada

Revista Pessoa em 04/02/2021

Edições Mombak

Lisboa

ISSN 21791929