Descobri essa semana que passei os últimos 20, talvez 30 anos da minha vida, trocando o nome de um tio do meu pai, por causa de um livro da minha mãe em que ela usa a figura dele como um personagem. Sempre me referia a ele pelo nome do personagem fictício.
Seria uma saída fácil e conveniente culpar a minha já lendária distração, mas não. Não é verdadeiro. Ele faleceu quando eu era muito novinha e, portanto, não tivemos muito contato. Dele, me lembro apenas que gostava de sorvete de flocos. Sim, estou tentando justificar o injustificável. Me deixa.
Trocar nomes de coisas, pessoas, bichos, plantas e lugares é um traço marcante dessa família. Não é falta de carinho, veja bem. É falta de atenção mesmo.
A rua Aires Saldanha vira rapidamente Joaquim Távora. A cidade de Itu volta e meia é chamada de Pitu, em algo que já virou uma private joke. O mais engraçado é que a gente se entende.
Como nasci sem bússola e me perco indo para a cozinha, a pergunta mais frequente que faço em um carro é “onde estamos?”. Seguida, é claro, por “como é mesmo o nome de…?”.
Não tenho olhos tristes, não fico na janela e vejo tudo. Só nunca sei onde estou.
Consigo lembrar, entretanto, de sonetos inteiros de cor. E que a expressão de cor vem de coração. Ou que sonetos são 14 versos, sendo necessariamente dois quartetos e dois tercetos com dez decassílabos cada. Informações muito úteis, claro, quando você está tentando entender como foi mesmo que você chegou em Curitiba indo de São Paulo a Santos.
Geografia, para mim, só existe como uma possibilidade concreta e ontológica na literatura. Todo o resto é mutável e, portanto, pouco confiável.
Nunca estive em Dublin, mas tenho certeza de que conseguiria, de olhos fechados, localizar a Duke Street e entrar, pavlovianamente, no Davy Byrne’s.
Inspirada pelo amor nos tempos do Covid, me imagino passeando pela praça Fernandez de Madrid (praça dos Evangélhos), em Cartagena, e procurando nos olhares das moças locais algo de Fermina Daza.
Por causa da Clara Averbuck, gravei na memória que a rua Purpurina fica na Vila Madalena. Não sei chegar lá sem GPS, mas isso é outro problema.
Sempre foi fácil lembrar de Machado ao caminhar pela Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. Mesmo hoje, em minhas visitas esporádicas à cidade onde fui criada, vejo muitos Bentinhos virando a esquina em direção à Chapelaria Alberto.
Não sou nada, nunca serei nada, mas gostaria de, um dia, tropeçar em uma tabacaria em Lisboa. Estou segura de que lá reencontrarei o meu tio perdido que, como perdeu o seu nome (e, portanto, a sua metafísica) por aí, chamarei de Esteves.
Crônica publicada no Rascunho em 02/06/2022