Vi certa vez, no carro do lado, uma moça, durante o tempo de um sinal fechado, passar batom, delineador, rímel e escovar o cabelo. Ela estava lindíssima, maquiagem perfeita.
Na frente do espelho bem iluminado do banheiro, eu, durante o tempo de dois eclipses, sou capaz de passar delineador. E fica torto. Culpo minha mãe, que nunca me ensinou essas coisas. Agora é tarde para aprender e decido sair sem. Os olhos ficam escondidos atrás dos óculos mesmo, desisto. Batom é mais que suficiente.
Namorado elogia, pronto, missão cumprida.
Saímos.
A festa é estranha e cheia de gente esquisita mas eu tô legal e ainda tomo mais um vinho. Festa do povo da minha idade (velhos) tem essa vantagem: servem vinho. Encontro gente da minha bolha e, claro, passamos a festa inteira reclamando da quantidade de gente magra e elegante à nossa volta. Detesto gente perfeita.
Outra categoria de pessoas insuportáveis é a dos sem dúvida. Sabe, com a vida toda resolvida. Odeio. O cidadão não me fez nada, mas gente cheia de certezas aflora o que há de pior em mim.
A minha bolha tem dúvidas, filhos, trabalho, faxinas por fazer, problemas, afetos, uma autoestima questionável, humor e uma conversa interessante. Talvez essas coisas andem juntas.
Observamos, em silêncio, o quarentão metido a bonitinho dar em cima de uma das magras. Vibramos, também sem palavras, quando a moça preferiu o careca gordinho. Torcendo aqui pelo casal.
Com a passagem da noite, chega a manhã mal dormida, mal acordada, mal organizada. Cachorra não se importa com nada disso e quer sair.
Saímos, é claro.
Não tenho mais nenhuma ilusão de estar no comando dessa operação (canina).
Ter cachorro é ótimo. São férias portáteis. Se, sem cachorro, eu falo que vou dar uma pausa no trabalho para dar uma volta no quarteirão, sou tachada de procrastinadora. Se, com cachorro, falo que vou dar uma pausa no trabalho para sair com o cachorro, tudo bem.
É quase como pescaria. Ficar sentada na beira do laguinho olhando para o nada por horas a fio, imóvel, é esquisito. Fazer a mesma coisa com uma vara de pescar na mão é um esporte. É um álibi.
Alongo um pouco o passeio. Nina já fez tudo o que queria fazer, cheirou todos os xixis, restos de comida e terras pelo caminho; latiu para os pombos e ganhou carinho do garçom da lanchonete da esquina (um velho amigo). Eu ainda não terminei o meu passeio e arrasto a cachorra por mais uns 15 quarteirões, até a vizinhança da casa antiga. Não tenho absolutamente nada para fazer por lá mas minhas pernas estavam com saudades da região. Está tudo irritantemente igual. Voltamos.
Me perguntam como está indo o adestramento para que a cachorra não suba no sofá. Respondo com uma demonstração. Sento e dou duas batinhas nas minhas coxas. A cachorra voa para cima do sofá e deita no meu colo, barriga para cima. Ainda completo a incontestável prova da minha incompetência com carinhos e voz de neném: Quem é a bonita? Quem é? Quem é? Isso mesmo, é a Nina! Lindinha da mamãe.
O olhar de decepção é inconfundível. Já o vi muitas vezes antes. Não dou a mínima e faço mais carinho na barriga da lindinha da mamãe.
A vida é muito curta para disciplina, autocontrole e educação. Bom mesmo é vinho com amigos, cafuné e passeios desnecessariamente longos.
Crônica publicada no Rascunho em 21/07/2022