Ele passa, explicando para alguém, “ativo”, “passivo”, “passivo circulante”, “líquido”. Demorei um bom tempo para entender que o assunto era contabilidade e não uma orgia.
Sou distraída, o que é ruim; me distraio com facilidade, o que é bom.
Preciso de bem pouco para estar entretida.
Esperando o horário de uma sessão, jogo Kuleshov. Grosso modo, o efeito Kuleshov é o processo de construção de significado por meio da edição de um filme. O jogo Kuleshov é uma invenção minha e consiste em juntar fragmentos de cenas ou conversas de estranhos para construir uma única narrativa na minha cabeça.
O casal ao lado fala algo sobre cortinas e na minha frente passa um sujeito conversando com o cachorro. Pronto, isso é suficiente para o meu cérebro, essa sucursal do caos, montar uma cena onde o cachorro usa roupinhas feitas de cortina e sai rodopiando pela colina uivando The hills are alive with the sound of music/ With songs that I sung for a thousand years.
O caminhão de entregas de refrigerantes estaciona do outro lado da rua e começa a descarregar. Alguém passa por mim gritando no telefone algo sobre o cancelamento de um serviço qualquer. O skatista desliza, com um headphone gigante sem fio. Lembro da IoT (Internet of Things) e da geladeira que faz compras sozinha. Obviamente, portanto, o bluetooth do skatista pediu por engano 300 garrafas de guaraná.
Em um milissegundo, estou na Dinamarca. Bluetooth era o apelido do rei Harald Gormsson. Eu totalmente comeria um smørrebrød agora.
Adoro essa brincadeira mental, mas às vezes é muito difícil evitar a aparência de louca quando começo a rir sozinha só porque alguém passou com um chapéu parecido com o do Hercule Poirot.
Minha vida melhorou muito com o smartphone. Fico com o celular na mão. Qualquer coisa, levanto a tela e as pessoas à minha volta já não acham tão estranho assim que eu dê uma gargalhada aparentemente sem motivo algum.
Por outro lado, quase perdi um voo assim, olhando para o nada.
No Twitter tem uma conta, PostcardFromThePast, que publica o scan de cartões postais antigos com o texto escrito neles, sem nenhum contexto. Encontramos pérolas como “Hot, dirty & smelly” que, conforme demonstrado no início desta crônica, pode ser a descrição de uma cidade, de um rio, de uma comida ou bebida, de uma pessoa, de um bacanal, de qualquer coisa.
Essa aleatoriedade da vida me diverte.
Vem jogar Kuleshov você também!
Crônica publicada em 24/02/2022 no Rascunho